Introdução
A morte de Cristo,[1] frequentemente mencionada
em conjunto com sua ressurreição, ocupa o centro da imagem paulina do
evangelho. Paulo conhece, utiliza e desenvolve seu significado redentor por
meio da fé. Ele estava familiarizado com o relato da morte de Cristo, lembra
aos leitores a narrativa do sofrimento e da morte de Jesus; e desenvolve a
importância da paixão de Cristo em contextos relacionados com todos os aspectos
de sua mensagem apostólica, em especial sua soteriologia, sua cristologia, sua
escatologia e sua ética. Paulo atribui um significado reparador ao sofrimento e
à morte de Cristo.
1.
A Cruz de Cristo na Mensagem de Paulo
Segundo Paulo, a cruz de
Cristo era essencial para a reflexão, em especial como o meio pelo qual Deus
planeja a salvação e como o instrumento para a construção da vida nova em
Cristo.[2]
Cerca de 25 anos depois
da crucifixão de Jesus, Paulo escreve a respeito do escândalo e da loucura
significantes da cruz (1Cor 1.18.23: Porque a palavra
da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o
poder de Deus).
Historicamente,
a execução de Jesus em uma cruz incentivou o entendimento de sua morte como a
de um criminoso comum, humilhado entre seu povo, na verdade, até amaldiçoado
por Deus (Dt 21.22-23: Quando também em alguém houver pecado,
digno do juízo de morte, e for morto, e o pendurares num madeiro. O seu
cadáver não permanecerá no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia;
porquanto o pendurado é maldito de Deus; assim não contaminarás a tua terra,
que o Senhor teu Deus te dá em herança). Como este Jesus também
era o “Ungido” (Messias)? Apesar desse problema, Paulo assegura que entre os
coríntios ele resolveu “nada saber a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo
crucificado” (1Cor 2.2).
Como
teólogo da cruz, Paulo desempenhou um papel essencial no estudo do significado
do Cristo crucificado. É evidente que Paulo apropriou-se da tradição cristã
preexistente a respeito da paixão de Jesus e que esses materiais tradicionais
foram incorporados em sua correspondência (1Cor 11.23-25;[3] 15.3-5[4]).
Na
perspectiva paulina, a fraqueza apostólica encontrava seu significado à luz do
sofrimento de Cristo. Assim, depois de lembrar aos coríntios que, entre eles, procurou
só apresentar Cristo, e Cristo crucificado, Paulo continua para chamar-lhes a
atenção para seu modo de vida enquanto está com eles: “Estive diante de vós
fraco, receoso e todo trêmulo” (1Cor 2,3;[5] Cl 1,24[6]). Outra inspiração para a
constante tradução paulina do sentido da cruz era a vida dele próprio e da
Igreja em Cristo, vida que não desconhecia a fraqueza, a oposição e o
sofrimento.
A
importância da cruz para Paulo baseia-se, portanto, em seu encontro com o
Senhor ressuscitado e nas exigências de seu ministério apostólico.
2
A Cruz e a Mensagem de Paulo
Como
a centralidade da cruz se manifesta para Paulo?[7] Em 1Coríntios 1.18, “a
linguagem da cruz” é praticamente sinônimo de “Evangelho”; em 2Coríntios 5.19,[8] ele emprega similarmente
“a palavras de reconciliação” em um contexto no qual apresenta o evento
salvífico: “E ele morreu por todos, a fim de que os vivos não vivam mais para
si mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles” (Fl 2.16:
“palavra da vida”; At 13.26: “palavra de salvação”).
A leitura das cartas
paulinas revelam duas expressões para o significado reparador da cruz:
Ø A
primeira apresenta a “entrega” de Jesus pela salvação da humanidade, como ato
divino (Rm 4.25: “entregue por nossas faltas”; Rm 8.32: “que não poupou o seu
próprio Filho, mas o entregou por nós todos”) ou como entrega de si mesmo (Gl
1.4: “que se entregou por nossos pecados”; G1 2.20: “se entregou por mim”).
Ø A
segunda expressão, a “fórmula de morrer”, representada em 1 Coríntios 15,3:
“Cristo morreu por nossos pecados” (Rm 5.6,8;[9] 14,9; 1Cor 8.11; 2Cor
5.14,15; G12,21; lTs 5.10). A frase paulina “Cristo morreu por nós” é a
confissão mais frequente e mais importante das epístolas paulinas.
3
A História de Jesus
O entendimento que Paulo
tem do “caminho da cruz” não é diferente do que encontramos no Evangelho de Marcos.
Por último, 1Timóteo 6.13 alude ao julgamento de Jesus diante de Pôncio Pilatos
de uma forma que pressupõe ao menos um conhecimento rudimentar do relato da
paixão. Nesses e em outros textos, reconhecemos que a teologia paulina tem uma
qualidade narrativa, isto é, ele entende a experiência cristã dentro da atividade
divina, que vai da criação do povo de Deus à parusia e, dentro dessa narrativa
maior, como seu assunto principal, está a narrativa da crucifixão de Jesus.
Embora Paulo não demonstre interesse nos detalhes históricos da paixão de Jesus
como dados históricos, ele estava a par deles e se preocupava com a importância
que tinham para a fé e a vida cristãs.
4
Vida na Morte e Ressurreição de Jesus
A referência paulina à
tradição da Última Ceia está colocada a fim de atacar o problema de divisões em
Corinto (1Cor 11.17-34; 1Cor 1.10-17); aqui, um lembrete da entrega sacrifical
que Jesus fez de si mesmo é a base para a exortação paulina a uma vida modelada
na paixão de Jesus, de orientação diaconal e com a forma da cruz.
Em Corinto, como em
Colossas, Paulo reflete sobre o sentido do Cristo crucificado, em grande parte
para contradizer ideias dos adversários.
O apóstolo propõe a
escandalosa cruz de Cristo como o “poder de Deus” “para os que estão sendo
salvos, para nós”.[10] A comunidade deve ser orientada
em torno do Cristo crucificado (1Cor 1.18-31).
Para os colossenses,
Paulo apresenta o Cristo reconciliou, na vida e morte de Jesus de carne e sangue:
“aprouve a Deus, tudo reconciliar por meio dele e para ele, tendo estabelecido
a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1.19-20; 1.14; 2.13-14; 3.13). Desse modo,
Paulo se opõe a um estilo de vida voltado para uma espiritualização como que
gnóstica. Paulo afirma com ardor a importância do comportamento ético neste
mundo material
Em Filipenses 2.6-11, Paulo
escreve um hino a Cristo. A vida de Jesus como obediente Filho de Deus ocupa a
posição central, e essa obediência é vista mais profundamente em sua disposição
de aceitar a rejeição, o sofrimento humano e a morte de cruz. Dessa forma,
Paulo afirma que a morte de Cristo é a expressão mais completa de sua vida e
estabelece para nós o modelo de uma vida de amor e obediência. Dessa maneira e de
muitas outras, Paulo mostra como o pensamento e a vida dos cristãos se baseiam
no evento fundamental da cruz de Cristo.
5
Os Benefícios da Morte de Cristo
A Paulo se preocupa muito
mais em explicar o significado da morte de Cristo que com suas circunstâncias
históricas, ele comunica esse significado acima de tudo em termos de seus
benefícios para a humanidade.[11]
Em Gálatas 3.10-14, Paulo
expõe o caráter salvífico da cruz de Cristo. Gálatas 3.1-14, afirma que a
experiência que os gálatas tinham de receber o Espírito pela fé significava o
cumprimento da promessa divina de abençoar os gentios por intermédio de Abraão e
que a morte de Cristo possibilitou esse cumprimento.[12]
Os benefícios da morte de
Cristo são apresentados em 3,10-14 por meio de uma combinação de imagens:
Cristo é o representante de Israel e em sua morte a Aliança chega ao auge;
justificação (G1 3.11); redenção (Gl 3.13); a promessa do Espírito (Gl 3.14); e
o triunfo sobre os poderes.
Em Efésios 2.14-15, onde
a lei surge como barreira que separa o judeu e o gentio; ali a morte de Cristo
destrói esse “muro de separação”.[13]
No entanto, em Gálatas a
lei caracteriza-se mais como força deste mundo que escravizam o povo judeu (G1
4.1,3). Em um contexto específico, então, Paulo insiste que a morte de Cristo
triunfou não contestando a lei, mas demonstrando sua validade e efetuando a
bênção da Aliança.
A mensagem da cruz em 2Coríntios
e Gálatas formula duas questões: o significado apocalíptico da cruz, “nova
criação”. Em 2Coríntios 5.17 e Gálatas 6.15, esses textos precisam ser
entendidos como símbolos do papel da morte de Jesus no término da época antiga
e na apresentação da nova.
No entendimento paulino
da cruz, vemos a inclusão dos fiéis gentios no “Israel de Deus” (G1 6.16). Para
Paulo, os fiéis, graças a sua inclusão na obra salvífica de Cristo, participam
dos benefícios da nova criação e, assim, em sua identidade como povo de Deus.
Paulo reconhece: “Com Cristo eu sou um crucificado; vivo, mas não sou mais eu,
é Cristo que vive em mim” (Gl 2.19-20).
6
A Morte de Cristo e o Propósito de Deus
Para Paulo, a questão do
sentido da cruz é primeiro uma questão a respeito de Deus e só depois uma
questão de salvação para o ser humano. Sua teologia da cruz origina-se de seu
entendimento do propósito divino e de Deus como ator principal no drama da
salvação. Embora afirme que Cristo “se entregou por nossos pecados, a fim de
nos arrancar deste mundo mal”, ele em seguida afirma que Cristo fez isso “de
acordo com a vontade de Deus, que é nosso Pai” (G1 1.4). Isto é, a entrega que Cristo
fez de si mesmo significa sua identificação e sua solidariedade com o propósito
salvífico de Deus.
Contudo, na posição
central está a iniciativa de Deus (“Deus que em Cristo reconciliava o mundo
consigo”, 2Cor 5.19; “Deus enviou o seu próprio Filho”, Rm 8.3).[14]
A justiça de Deus
manifesta-se em sua intervenção para trazer a salvação para uma humanidade
mergulhada no pecado. E manifesta-se precisamente na revelação de Deus na cruz
como alguém que cumpre suas promessas, que não faz vista grossa ao pecado, mas
pela obediência fiel e morte sacrifical de Jesus Cristo redime todos os que
crêem, sejam eles judeus ou gentios e, assim, que não introduz um meio de
salvação que anula a lei, mas que realmente a confirma (Rm 3.31).[15] Paulo afirma que a
justiça de Deus se revela em Cristo, não apenas como descrição de Deus em seu
papel de juiz, mas também e até mais como a atividade de Deus voltada para
fazer alianças e mantê-las; na morte de Cristo, a justiça de Deus se revela no
fato de Deus libertar as pessoas do pecado.
7
O amor de Deus. Segundo Romanos 5.6-8
A morte de Cristo é a
expressão definitiva do ilimitado amor de Deus: “Mas nisto Deus prova o seu
amor para conosco: Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8).
Essa afirmação segue de perto a alegação de que a experiência humana do amor
divino garante que a tribulação leva a uma esperança que não decepciona (Rm
5,3-5). Aqui há algumas declarações decisivas:
Ø Primeiro,
não é possível medir o amor de Deus pela humanidade; dificilmente alguém se disporia
a morrer por um justo (Rm 5.7), mas Cristo morreu em prol dos “ímpios” (Rm 5.6),
pelos “pecadores” (Rm 5.8), pelos “inimigos de Deus” (Rm 5.10).[16]
Ø Segundo,
os leitores de Paulo podem estar seguros de que seu sofrimento tem significado,
porque o sofrimento de Cristo comprovou ser significativo. Por sua morte,
“estamos justificados”, “salvos da cólera de Deus”, “reconciliados com Deus”
(Rm 5.9-11).
Conclusão
Segundo Paulo, a morte e
ressurreição de Cristo marca o início de uma nova época que se estende até a
volta de Cristo. Isso muda fundamentalmente a maneira como entendemos a vida no
presente. Primeiro, a percepção de que a morte e ressurreição de Cristo instituiu
uma nova época permite-nos imaginar a vida nova em contraste com modos velhos
de vida e acolher o poder de Deus necessário para a vida nova. Além disso,
considerar o presente à luz do passado motiva os fiéis a ser gratos pela libertação
da escravidão ao pecado.
Finalmente, o
reconhecimento deste novo tempo incentiva os fiéis a reconhecer ainda mais que
a cruz determina a vida no presente. Isso significa que um dos efeitos da cruz
é tomar possível a restauração da humanidade, restaurada em seus
relacionamentos com Deus, consigo mesma e com toda a criação. A Igreja cuja teologia é formada pela
mensagem da cruz precisa assumir ela mesma uma vida cruciforme, para que sua
teologia tenha credibilidade. Isso significa que os fiéis devem adotar a forma
de obediência a Deus representada na vida de Cristo, expressa, em última
instância, em sua morte. Esse pensamento está por trás do hino a Cristo em
Filipenses 2.6-11.
De sorte que haja em vós o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus,
6 Que, sendo em forma de Deus, não
teve por usurpação ser igual a Deus,
7 Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando
a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
8 E, achado na forma de homem,
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
9 Por isso, também Deus o exaltou
soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
10 Para que ao nome de Jesus se
dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,
11 E toda a língua confesse que
Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.
Para Paulo, os fiéis
manifestam a obediência a Cristo aqui e agora proclamando sua morte até que ele
venha.
Bibliografia
BECKER, Jürgen. Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia.
São Paulo: Academia Cristã, 2007.
BORNKAMM, Günther. Paulo: Vida e Obra. São Paulo: Academia
Cristã, 2009.
CERFAUX, Lucien. Cristo na Teologia de Paulo. São Paulo:
Teológica, 2003.
CONNOR, Jerome Murphy O. Paulo de Tarso: História de um Apóstolo. São
Paulo: Paulus; Loyola, 2007.
DETTWILER, Andreas; KAESTLI,
Jean-Daniel; MARGUERAT, Daniel. Paulo,
uma teologia em construção. São Paulo: Loyola, 2011.
DUNN, James D. G. A nova
perspectiva sobre Paulo. São Paulo: Academia Cristã, 2011.
HAWTHORNE, Gerald F; Martin, Ralph
P; REID, Daniel G. Dicionário de Paulo e
Suas Cartas. São Paulo: Loyola; Vida Nova; Paulus, 2008.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. São Paulo: Teológica;
Paulus, 2003.
SCHNELLE,
Udo. Paulo: Vida e Pensamento. São
Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010.
[1] O assunto aqui
abordado é tratado com riqueza de detalhes na maravilhosa obra: HAWTHORNE, Gerald
F; Martin, Ralph P; REID, Daniel G. Dicionário
de Paulo e Suas Cartas. São Paulo: Loyola; Vida Nova; Paulus, 2008 p. 852.
[2] BORNKAMM,
Günther. Paulo: Vida e Obra. São
Paulo: Academia Cristã, 2009. p. 188.
[3] 1Cor 11.23-25: Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor
Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; E, tendo dado graças, o partiu
e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em
memória de mim. Semelhantemente também, depois de
cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue;
fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim.
[4] 15.3-5: Porque primeiramente vos
entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras. E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras. E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze
[5] E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em
grande tremor.
[6] Regozijo-me agora no que padeço por vós, e na minha
carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja.
[7] DETTWILER,
Andreas; KAESTLI, Jean-Daniel; MARGUERAT, Daniel. Paulo, uma teologia em construção. São Paulo: Loyola, 2011. p. 321.
[8] Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o
mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da
reconciliação.
Porque
Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque
apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse
morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós,
sendo nós ainda pecadores.
[11] A morte e a
ressurreição de Jesus que como evento salvífico, leia: SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e
Pensamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010. p. 562.
[12] DUNN, James D. G.
A nova perspectiva sobre Paulo. São Paulo: Academia Cristã, 2011 .p 289.
[13] Leia mais em:
BORNKAMM, Günther. Paulo: Vida e Obra. São
Paulo: Academia Cristã, 2009. p. 234.
[14] Para entender o
contexto de Romanos 8, leia a belíssima obra: KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. São Paulo:
Teológica; Paulus, 2003. p. 199.
[15] CONNOR, Jerome
Murphy O. Paulo de Tarso: História de um
Apóstolo. São Paulo: Paulus; Loyola, 2007.
[16] Leia mais em:
BECKER, Jürgen. Apóstolo Paulo: Vida,
Obra e Teologia. São Paulo: Academia Cristã, 2007.
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