sábado, 1 de abril de 2017

376 - A CENTRALIDADE DA MORTE DE CRISTO NA MENSAGEM DE PAULO. David Rubens de Souza



Introdução
A morte de Cristo,[1] frequentemente mencionada em conjunto com sua ressurreição, ocupa o centro da imagem paulina do evangelho. Paulo conhece, utiliza e desenvolve seu significado redentor por meio da fé. Ele estava familiarizado com o relato da morte de Cristo, lembra aos leitores a narrativa do sofrimento e da morte de Jesus; e desenvolve a importância da paixão de Cristo em contextos relacionados com todos os aspectos de sua mensagem apostólica, em especial sua soteriologia, sua cristologia, sua escatologia e sua ética. Paulo atribui um significado reparador ao sofrimento e à morte de Cristo.

1. A Cruz de Cristo na Mensagem de Paulo
Segundo Paulo, a cruz de Cristo era essencial para a reflexão, em especial como o meio pelo qual Deus planeja a salvação e como o instrumento para a construção da vida nova em Cristo.[2]
Cerca de 25 anos depois da crucifixão de Jesus, Paulo escreve a respeito do escândalo e da loucura significantes da cruz (1Cor 1.18.23: Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus).
Historicamente, a execução de Jesus em uma cruz incentivou o entendimento de sua morte como a de um criminoso comum, humilhado entre seu povo, na verdade, até amaldiçoado por Deus (Dt 21.22-23: Quando também em alguém houver pecado, digno do juízo de morte, e for morto, e o pendurares num madeiro. O seu cadáver não permanecerá no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto o pendurado é maldito de Deus; assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança). Como este Jesus também era o “Ungido” (Messias)? Apesar desse problema, Paulo assegura que entre os coríntios ele resolveu “nada saber a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2.2).
Como teólogo da cruz, Paulo desempenhou um papel essencial no estudo do significado do Cristo crucificado. É evidente que Paulo apropriou-se da tradição cristã preexistente a respeito da paixão de Jesus e que esses materiais tradicionais foram incorporados em sua correspondência (1Cor 11.23-25;[3] 15.3-5[4]).
Na perspectiva paulina, a fraqueza apostólica encontrava seu significado à luz do sofrimento de Cristo. Assim, depois de lembrar aos coríntios que, entre eles, procurou só apresentar Cristo, e Cristo crucificado, Paulo continua para chamar-lhes a atenção para seu modo de vida enquanto está com eles: “Estive diante de vós fraco, receoso e todo trêmulo” (1Cor 2,3;[5] Cl 1,24[6]). Outra inspiração para a constante tradução paulina do sentido da cruz era a vida dele próprio e da Igreja em Cristo, vida que não desconhecia a fraqueza, a oposição e o sofrimento.
A importância da cruz para Paulo baseia-se, portanto, em seu encontro com o Senhor ressuscitado e nas exigências de seu ministério apostólico.

2 A Cruz e a Mensagem de Paulo
Como a centralidade da cruz se manifesta para Paulo?[7] Em 1Coríntios 1.18, “a linguagem da cruz” é praticamente sinônimo de “Evangelho”; em 2Coríntios 5.19,[8] ele emprega similarmente “a palavras de reconciliação” em um contexto no qual apresenta o evento salvífico: “E ele morreu por todos, a fim de que os vivos não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles” (Fl 2.16: “palavra da vida”; At 13.26: “palavra de salvação”).
A leitura das cartas paulinas revelam duas expressões para o significado reparador da cruz:
Ø     A primeira apresenta a “entrega” de Jesus pela salvação da humanidade, como ato divino (Rm 4.25: “entregue por nossas faltas”; Rm 8.32: “que não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por nós todos”) ou como entrega de si mesmo (Gl 1.4: “que se entregou por nossos pecados”; G1 2.20: “se entregou por mim”).
Ø     A segunda expressão, a “fórmula de morrer”, representada em 1 Coríntios 15,3: “Cristo morreu por nossos pecados” (Rm 5.6,8;[9] 14,9; 1Cor 8.11; 2Cor 5.14,15; G12,21; lTs 5.10). A frase paulina “Cristo morreu por nós” é a confissão mais frequente e mais importante das epístolas paulinas.

3 A História de Jesus
O entendimento que Paulo tem do “caminho da cruz” não é diferente do que encontramos no Evangelho de Marcos. Por último, 1Timóteo 6.13 alude ao julgamento de Jesus diante de Pôncio Pilatos de uma forma que pressupõe ao menos um conhecimento rudimentar do relato da paixão. Nesses e em outros textos, reconhecemos que a teologia paulina tem uma qualidade narrativa, isto é, ele entende a experiência cristã dentro da atividade divina, que vai da criação do povo de Deus à parusia e, dentro dessa narrativa maior, como seu assunto principal, está a narrativa da crucifixão de Jesus. Embora Paulo não demonstre interesse nos detalhes históricos da paixão de Jesus como dados históricos, ele estava a par deles e se preocupava com a importância que tinham para a fé e a vida cristãs.

4 Vida na Morte e Ressurreição de Jesus
A referência paulina à tradição da Última Ceia está colocada a fim de atacar o problema de divisões em Corinto (1Cor 11.17-34; 1Cor 1.10-17); aqui, um lembrete da entrega sacrifical que Jesus fez de si mesmo é a base para a exortação paulina a uma vida modelada na paixão de Jesus, de orientação diaconal e com a forma da cruz.
Em Corinto, como em Colossas, Paulo reflete sobre o sentido do Cristo crucificado, em grande parte para contradizer ideias dos adversários.
O apóstolo propõe a escandalosa cruz de Cristo como o “poder de Deus” “para os que estão sendo salvos, para nós”.[10] A comunidade deve ser orientada em torno do Cristo crucificado (1Cor 1.18-31).
Para os colossenses, Paulo apresenta o Cristo reconciliou, na vida e morte de Jesus de carne e sangue: “aprouve a Deus, tudo reconciliar por meio dele e para ele, tendo estabelecido a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1.19-20; 1.14; 2.13-14; 3.13). Desse modo, Paulo se opõe a um estilo de vida voltado para uma espiritualização como que gnóstica. Paulo afirma com ardor a importância do comportamento ético neste mundo material
Em Filipenses 2.6-11, Paulo escreve um hino a Cristo. A vida de Jesus como obediente Filho de Deus ocupa a posição central, e essa obediência é vista mais profundamente em sua disposição de aceitar a rejeição, o sofrimento humano e a morte de cruz. Dessa forma, Paulo afirma que a morte de Cristo é a expressão mais completa de sua vida e estabelece para nós o modelo de uma vida de amor e obediência. Dessa maneira e de muitas outras, Paulo mostra como o pensamento e a vida dos cristãos se baseiam no evento fundamental da cruz de Cristo.

5 Os Benefícios da Morte de Cristo
A Paulo se preocupa muito mais em explicar o significado da morte de Cristo que com suas circunstâncias históricas, ele comunica esse significado acima de tudo em termos de seus benefícios para a humanidade.[11]
Em Gálatas 3.10-14, Paulo expõe o caráter salvífico da cruz de Cristo. Gálatas 3.1-14, afirma que a experiência que os gálatas tinham de receber o Espírito pela fé significava o cumprimento da promessa divina de abençoar os gentios por intermédio de Abraão e que a morte de Cristo possibilitou esse cumprimento.[12]
Os benefícios da morte de Cristo são apresentados em 3,10-14 por meio de uma combinação de imagens: Cristo é o representante de Israel e em sua morte a Aliança chega ao auge; justificação (G1 3.11); redenção (Gl 3.13); a promessa do Espírito (Gl 3.14); e o triunfo sobre os poderes.
Em Efésios 2.14-15, onde a lei surge como barreira que separa o judeu e o gentio; ali a morte de Cristo destrói esse “muro de separação”.[13]
No entanto, em Gálatas a lei caracteriza-se mais como força deste mundo que escravizam o povo judeu (G1 4.1,3). Em um contexto específico, então, Paulo insiste que a morte de Cristo triunfou não contestando a lei, mas demonstrando sua validade e efetuando a bênção da Aliança.
A mensagem da cruz em 2Coríntios e Gálatas formula duas questões: o significado apocalíptico da cruz, “nova criação”. Em 2Coríntios 5.17 e Gálatas 6.15, esses textos precisam ser entendidos como símbolos do papel da morte de Jesus no término da época antiga e na apresentação da nova.
No entendimento paulino da cruz, vemos a inclusão dos fiéis gentios no “Israel de Deus” (G1 6.16). Para Paulo, os fiéis, graças a sua inclusão na obra salvífica de Cristo, participam dos benefícios da nova criação e, assim, em sua identidade como povo de Deus. Paulo reconhece: “Com Cristo eu sou um crucificado; vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2.19-20).

6 A Morte de Cristo e o Propósito de Deus
Para Paulo, a questão do sentido da cruz é primeiro uma questão a respeito de Deus e só depois uma questão de salvação para o ser humano. Sua teologia da cruz origina-se de seu entendimento do propósito divino e de Deus como ator principal no drama da salvação. Embora afirme que Cristo “se entregou por nossos pecados, a fim de nos arrancar deste mundo mal”, ele em seguida afirma que Cristo fez isso “de acordo com a vontade de Deus, que é nosso Pai” (G1 1.4). Isto é, a entrega que Cristo fez de si mesmo significa sua identificação e sua solidariedade com o propósito salvífico de Deus.
Contudo, na posição central está a iniciativa de Deus (“Deus que em Cristo reconciliava o mundo consigo”, 2Cor 5.19; “Deus enviou o seu próprio Filho”, Rm 8.3).[14]
A justiça de Deus manifesta-se em sua intervenção para trazer a salvação para uma humanidade mergulhada no pecado. E manifesta-se precisamente na revelação de Deus na cruz como alguém que cumpre suas promessas, que não faz vista grossa ao pecado, mas pela obediência fiel e morte sacrifical de Jesus Cristo redime todos os que crêem, sejam eles judeus ou gentios e, assim, que não introduz um meio de salvação que anula a lei, mas que realmente a confirma (Rm 3.31).[15] Paulo afirma que a justiça de Deus se revela em Cristo, não apenas como descrição de Deus em seu papel de juiz, mas também e até mais como a atividade de Deus voltada para fazer alianças e mantê-las; na morte de Cristo, a justiça de Deus se revela no fato de Deus libertar as pessoas do pecado.

7 O amor de Deus. Segundo Romanos 5.6-8
A morte de Cristo é a expressão definitiva do ilimitado amor de Deus: “Mas nisto Deus prova o seu amor para conosco: Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8). Essa afirmação segue de perto a alegação de que a experiência humana do amor divino garante que a tribulação leva a uma esperança que não decepciona (Rm 5,3-5). Aqui há algumas declarações decisivas:
Ø Primeiro, não é possível medir o amor de Deus pela humanidade; dificilmente alguém se disporia a morrer por um justo (Rm 5.7), mas Cristo morreu em prol dos “ímpios” (Rm 5.6), pelos “pecadores” (Rm 5.8), pelos “inimigos de Deus” (Rm 5.10).[16]
Ø Segundo, os leitores de Paulo podem estar seguros de que seu sofrimento tem significado, porque o sofrimento de Cristo comprovou ser significativo. Por sua morte, “estamos justificados”, “salvos da cólera de Deus”, “reconciliados com Deus” (Rm 5.9-11).

Conclusão
Segundo Paulo, a morte e ressurreição de Cristo marca o início de uma nova época que se estende até a volta de Cristo. Isso muda fundamentalmente a maneira como entendemos a vida no presente. Primeiro, a percepção de que a morte e ressurreição de Cristo instituiu uma nova época permite-nos imaginar a vida nova em contraste com modos velhos de vida e acolher o poder de Deus necessário para a vida nova. Além disso, considerar o presente à luz do passado motiva os fiéis a ser gratos pela libertação da escravidão ao pecado.
Finalmente, o reconhecimento deste novo tempo incentiva os fiéis a reconhecer ainda mais que a cruz determina a vida no presente. Isso significa que um dos efeitos da cruz é tomar possível a restauração da humanidade, restaurada em seus relacionamentos com Deus, consigo mesma e com toda a criação.  A Igreja cuja teologia é formada pela mensagem da cruz precisa assumir ela mesma uma vida cruciforme, para que sua teologia tenha credibilidade. Isso significa que os fiéis devem adotar a forma de obediência a Deus representada na vida de Cristo, expressa, em última instância, em sua morte. Esse pensamento está por trás do hino a Cristo em Filipenses 2.6-11.
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,
6 Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,
7 Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
8 E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
9 Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
10 Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,
11 E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.
Para Paulo, os fiéis manifestam a obediência a Cristo aqui e agora proclamando sua morte até que ele venha.

Bibliografia

BECKER, Jürgen. Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia. São Paulo: Academia Cristã, 2007.
BORNKAMM, Günther. Paulo: Vida e Obra. São Paulo: Academia Cristã, 2009.
CERFAUX, Lucien. Cristo na Teologia de Paulo. São Paulo: Teológica, 2003.
CONNOR, Jerome Murphy O. Paulo de Tarso: História de um Apóstolo. São Paulo: Paulus; Loyola, 2007.
DETTWILER, Andreas; KAESTLI, Jean-Daniel; MARGUERAT, Daniel. Paulo, uma teologia em construção. São Paulo: Loyola, 2011.
DUNN, James D. G. A nova perspectiva sobre Paulo. São Paulo: Academia Cristã, 2011.
HAWTHORNE, Gerald F; Martin, Ralph P; REID, Daniel G. Dicionário de Paulo e Suas Cartas. São Paulo: Loyola; Vida Nova; Paulus, 2008.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. São Paulo: Teológica; Paulus, 2003.
SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e Pensamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010.







[1] O assunto aqui abordado é tratado com riqueza de detalhes na maravilhosa obra: HAWTHORNE, Gerald F; Martin, Ralph P; REID, Daniel G. Dicionário de Paulo e Suas Cartas. São Paulo: Loyola; Vida Nova; Paulus, 2008 p. 852.
[2] BORNKAMM, Günther. Paulo: Vida e Obra. São Paulo: Academia Cristã, 2009. p. 188.
[3] 1Cor 11.23-25: Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; E, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim.
[4] 15.3-5: Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze
[5] E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor.
[6] Regozijo-me agora no que padeço por vós, e na minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja.
[7] DETTWILER, Andreas; KAESTLI, Jean-Daniel; MARGUERAT, Daniel. Paulo, uma teologia em construção. São Paulo: Loyola, 2011. p. 321.
[8] Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação.
Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.

CERFAUX, Lucien. Cristo na Teologia de Paulo. São Paulo: Teológica, 2003. p. 90.
[11] A morte e a ressurreição de Jesus que como evento salvífico, leia: SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e Pensamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010. p. 562.
[12] DUNN, James D. G. A nova perspectiva sobre Paulo. São Paulo: Academia Cristã, 2011 .p 289.
[13] Leia mais em: BORNKAMM, Günther. Paulo: Vida e Obra. São Paulo: Academia Cristã, 2009. p. 234.
[14] Para entender o contexto de Romanos 8, leia a belíssima obra: KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. São Paulo: Teológica; Paulus, 2003. p. 199.
[15] CONNOR, Jerome Murphy O. Paulo de Tarso: História de um Apóstolo. São Paulo: Paulus; Loyola, 2007.
[16] Leia mais em: BECKER, Jürgen. Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia. São Paulo: Academia Cristã, 2007. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário


Tradução: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. parte do artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.