quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

444 - O futuro ecológico da teologia cristã. Artigo de Jürgen Moltmann.





A nova imagem do ser humano: do centro do mundo à integração cósmica. Os seres humanos, na sua singularidade, no seu destino e na sua esperança de vida, são uma parte da natureza. Portanto, eles não estão no centro do mundo, mas, para sobreviver, devem se integrar na natureza da Terra e na comunidade das criaturas com as quais vivem
Publicamos aqui a primeira parte da análise do teólogo alemão Jürgen Moltmann, em artigo publicado no sítio Teologi@Internet, 21-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Encontramo-nos hoje no fim da era moderna e no início do futuro ecológico do nosso mundo, se o nosso mundo deve sobreviver. Com isso, entende-se um novo paradigma, em seu nascimento, que liga entre si a cultura humana e a natureza da Terra de uma forma diferente de como ocorreu no paradigma da era moderna.
A era moderna foi determinada pela tomada de poder do ser humano sobre a natureza e as suas forças. Essas conquistas e tomadas de posse da natureza chegaram hoje ao seu limite.
Todos os indícios indicam que o clima da Terra está se alterando drasticamente por obra de influentes comportamentos humanos. As calotas de gelo dos polos da Terra estão derretendo, o nível da água aumenta, algumas ilhas desaparecem, aumentam os períodos de seca, ampliam-se os desertos e assim por diante. 
Nós conhecemos tudo isso, mas não fazemos nada com relação ao que sabemos. A maior parte das pessoas fecham os olhos ou estão como que paralisadas.
Porém, nada favorece tanto as catástrofes quanto o não fazer nada paralisante. Precisamos compreender a natureza de um modo novo e de uma nova imagem de ser humano e, por isso, de uma nova experiência de Deus na nossa cultura. Uma nova teologia ecológica pode nos ajudar nisso. Por que justamente a teologia?
Porque a relação com a natureza e a imagem de ser humano da idade moderna foram determinadas pela teologia moderna: foi a dominação do mundo pelo ser humano à imagem e semelhança de Deus; foi a compreensão de Deus sem o mundo e a concepção do mundo sem Deus; e foi o conceito mecanicista da Terra e de todos os habitantes não humanos da Terra, que era preciso fazer com que se tornassem "súditos".
Há uma velha piada: dois planetas se encontram no universo. O primeiro pergunta: "Como você está?". O outro responde: "Muito mal. Estou doente. Tenho homo sapiens". O primeiro responde: "Sinto muito. É uma coisa terrível. Eu também tive. Mas não se preocupe que passa!".
Eis a perspectiva nova e planetária para a humanidade: essa doença humana planetária passa porque o gênero humano se autodestrói, ou passa porque o gênero humano saberá se tornar sábio e curar as feridas que ele infligiu até agora no planeta "Terra"?
1. A nova imagem do ser humano: Do ser centro do mundo à integração cósmica, ou: Da arrogância do domínio sobre o à humildade cósmica
Antes que nós, seres humanos, "cultivemos e cuidemos da Terra" e assumamos um senhorio qualquer sobre o mundo ou uma responsabilidade pela criação, a Terra nos provê. Ela cria as condições favoráveis à vida para o gênero humano e as garante até hoje. Não é a Terra que foi confiada a nós, mas nós fomos confiados à Terra. A Terra pode viver sem os seres humanos e o fez durante milhões de anos. Nós, ao invés, não podemos viver sem a Terra.
Podemos provar isso através da leitura moderna do relato bíblico da criação, já que os relatos bíblicos da criação estão profundamente enraizados na consciência e no inconsciente do ser humano moderno ocidental.
a) Segundo a leitura moderna, o ser humano é a "coroa da criação". Somente o ser humano é criado à imagem de Deus e destinado a exercer o senhorio sobre a terra e sobre todas as criaturas terrestres: "Encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra" (Gn 1, 28). Segundo o Salmo 8, 7, Deus fez o ser humano senhor: "Tu o fizeste reinar sobre as obras de tuas mãos, e sob os pés dele tudo colocaste". Com base nisso, o ser humano deve "subjugar", como um faraó, a Terra e todas as suas cocriaturas. 
Segundo o relato da criação, ele deve, contudo, "cultivar e cuidar", como um jardineiro, o Éden, o jardim de Deus. Isso soa mais humilde e expressa uma maior atenção, embora o ser humano, em ambos os relatos da criação, seja o sujeito, e a Terra, com todos os seus habitantes, seja o seu objeto. Essa é a famosa "posição especial do ser humano no cosmos", como Max Scheler [1] a chamou. Esses textos bíblicos têm mais de 2.500 anos, mas tornaram-se "modernos" há apenas 400 anos, na época do Renascimento.
Na época do Renascimento, essa imagem bíblica do ser humano foi potencializada: o ser humano está no centro do mundo. O texto clássico foi fornecido por Pico della Mirandola em 1486, no seu escrito: Discurso sobre a dignidade do homem [2]. Ele começa com uma citação do douto islâmico Abdullah: "Nada existe no mundo que seja mais esplêndido do que o homem", e vê o ser humano como "digno de toda admiração, e seja qual for o destino que lhe caiba na ordem universal, ele é invejável não só pelos brutos, mas também pelos astros, pelos espíritos do outro mundo [os anjos]".
"A natureza limitada dos outros [seres] está contida dentro de leis por mim [Deus] prescritas. Tu, não constrangido por nenhuma barreira, a determinarás segundo o teu arbítrio, cujo poder eu te entreguei. Eu te pus no meio do mundo para que de lá tu avistasses melhor o que está no mundo... para que de ti mesmo, quase livre e soberano artífice, te plasmasses e te esculpisses na forma que tu escolherias" (ed. it., 5s.).
Como imagem do Criador, o ser humano do Renascimento é um "criador de si mesmo", e – como se costuma dizer hoje – a sua "invenção específica". O mundo está constrangido sob a lei da necessidade, enquanto o ser humano é o seu livre senhor. Ele faz de si mesmo a "medida de todas as coisas", o inventor de si mesmo e o dominador do seu próprio mundo.
Do inglês Francis Bacon vem o apelo que durante toda a minha juventude caracterizou o sistema educacional alemão: "Saber é poder". À aquisição do poder técnico-científico sobre a natureza, ele ligou um sonho de redenção: o ser humano, como imagem de Deus, foi criado para exercer um senhorio sobre a natureza. Por causa do pecado original, ele perdeu esse poder ao qual Deus o havia destinado. Através da ciência da natureza e da técnica, ele obtém "a restitution and reinvesting (in great part) to the souvereignty and power which he had in his first state of creation" [3]. 
Enquanto, porém, segundo a Bíblia, é a imagem e semelhança do ser humano com Deus que fundamenta o seu senhorio sobre a natureza, Bacon argumentava em sentido contrário: o domínio sobre a natureza motiva a sua imagem e semelhança com Deus. Qual imagem de Deus está por trás disso? Como Deus é o senhor do universo, o ser humano, como sua imagem, deve se tornar o senhor da Terra. De todas as propriedades de Deus, nessa analogia, permaneceu apenas a onipotência.
O filósofo francês René Descartes no seu Discurso sobre o Método, de 1692, deu um passo à frente [4]. Através da ciência e da técnica, o ser humano deve se tornar "o senhor e dono da natureza". Ele distingue o mundo em res cogitans do espírito humano e res extensa da natureza. Na natureza, o espírito pensante vê apenas objetos de extensão mensurável. A redução do conhecimento da natureza a grandezas mensuráveis tornou-se a base da ciência natural moderna. Nisso consiste a "reductio scientiae ad mathematicam" [5]. Ele reduziu desse modo o corpo humano a "localização" mensurável da alma humana. Seu discípulo, o médico La Mettrie, tirou a consequência disso: L'Homme machine (1748).
b) Segundo o novo modo ecológico de ler os mesmos relatos bíblicos da criação, o ser humano é a última criatura de Deus e, portanto, a criatura mais dependente. Para a sua vida aqui na terra, o ser humano depende da existência dos animais e das plantas, do ar e da água, da luz e da alternância do dia e da noite, do sol, da lua e das estrelas, e sem eles não pode viver. 
O homem existe apenas porque existem todas essas outras criaturas. Todas podem existir sem o ser humano, enquanto os seres humanos não podem existir sem elas. Por isso, não se pode imaginar o ser humano como soberano divino ou como jardineiro solitário com relação à natureza. Qualquer que seja a sua "posição especial" e as suas tarefas especiais, o ser humano é uma criatura na grande comunidade dos seres criados e "uma parte da natureza" [6]. 
Ainda de acordo com o segundo relato da criação, antes que fosse soprado no ser humano o "hálito" divino, ele é "pó do solo" (Gn 2, 7), e antes que os seres humanos "cultivem e cuidem" a terra, eles conhecem o ditado: "És pó e ao pó voltarás" (Gn 3, 19).
Segundo as tradições bíblicas, Deus não infundiu o seu próprio espírito divino apenas no ser humano, mas também em todas as suas criaturas:
"Escondes tua face e eles se apavoram,  retiras deles a respiração, e expiram,
voltando a ser pó. Envias o teu sopro e eles são criados,  e assim renovas a face da terra" (Sl 104, 29-30).
Pode-se deduzir disso: se a imagem e semelhança divina do ser humano depende do espírito divino que nele habita, então todas as criaturas, nas quais habita o Espírito de Deus, são imagens de Deus e, portanto, devem ser respeitadas. Em todo caso, os seres humanos fazem parte da natureza da Terra de um modo tão estreito que se encontram na mesma situação não redimida e na esperança comum da redenção. Os seres humanos não serão salvos "desta" terra, mas "com" esta terra, da caducidade e da morte.
Paulo ouviu o "gememos no íntimo, esperando […] a libertação para o nosso corpo" (Rm 8, 23) por parte daqueles que são animados pelo Espírito de Deus. Por isso, Ele também ouviu o "gemido e a expectativa" da criação não humana ao seu redor (Rm 8, 22). Ele estava convencido de que é o próprio Espírito de Deus que faz com que nós e toda a criação gemamos à espera da redenção do destino de morte. O Espírito presente é o princípio da nova criação, na qual não haverá mais a morte, porque ele é o Espírito da ressurreição de Jesus e a presença difundida do Ressuscitado. 
A teologia ortodoxa expressou isso com a esperança não só na divinização dos seres humanos, mas também na divinização do cosmos: "Toda a natureza está destinada à glória, da qual os seres humanos terão parte no reino do cumprimento" [7]. 
Os seres humanos, na sua singularidade, no seu destino e na sua esperança de vida, são uma parte da natureza. Portanto, eles não estão no centro do mundo, mas, para sobreviver, devem se integrar na natureza da Terra e na comunidade das criaturas com as quais vivem. 
A arrogância do poder sobre a natureza e a liberdade de fazer dela o que querem não compete a eles, mas lhes compete, sim, uma "humildade cósmica" e uma consideração atenta por tudo o que eles fazem à natureza. Só quando estivermos conscientes da nossa dependência à vida da Terra e da existência de outros seres vivos nos tornaremos, de "divindades soberbas e infelizes" (Lutero), seres humanos. O verdadeiro saber não é o poder, mas a sabedoria.

Notas:
1. M. SCHELER, Die Stellung des Menschen im Kosmos (1927), München 1947.
2. G. PICO DELLA MIRANDOLA, Discorso sulla dignità dell’uomo, La Scuola, Brescia s.d.
3. Sobre o desenvolvimento, cfr. A. KOYRÉ, Von der geschlossenen Welt zum unendlichen Universum, Frankfurt 1969. Sobre a discussão teológica, cfr. J. MOLTMANN, Wissenschaft und Weisheit. Zum Gespräch zwischen Naturwissenschaft und Theologie, Gütersloh 2002 [trad. it., Scienza e sapienza. Scienza e teologia in dialogo, Queriniana, Brescia 2003].
4. R. DESCARTES, Discours de la Méthode (1692), Mainz 1948, 145.
5. A. ZAKAI, Jonathan Edward’s Philosophy of Nature. The Re-enchantment of the World in an Age of Scientific Reasoning, London 2010.
6. La Carta della Terra 1992, 2000. Preambolo.
7. D. STANILOAE, Orthodoxe Dogmatik, Gütersloh 1985, 294.
8. Assumo a feliz expressão de R. BAUCKHAM, Bible and Ecology. Rediscovering the Community of Creation, London 2010, 37.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509723-o-futuro-ecologico-da-teologia-crista-artigo-de-juergen-moltmann-


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Tradução: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. parte do artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.