O professor Jürgen Moltmann deixou
sua marca na teologia do período pós-1945 como poucos. Ainda 55 anos após a
publicação da sua “Teologia da Esperança”, aos 92 anos de idade, ele se mostra
cheio de confiança. Um diálogo sobre coragem, libertação, profecia e sobre uma
máquina de escrever de viagem.
A reportagem é de Hannes
Leitlein, publicada no caderrno Christ & Welt, do jornal Die Zeit,
18-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na casa dos Moltmann, a
entrada é o ambiente onde se recebem as visitas. A partir daqui, pode-se
entrever os outros ambientes do térreo: a sala de estar com vista para o vale
de Neckar, a cozinha, o escritório. Dois sofás estão à disposição – como
se a entrevista fosse um evento habitual para o qual usam os móveis adequados.
Moltmann fala lentamente,
mas com precisão. Tínhamos combinado uma hora de conversa e depois de uma hora
exata nos despedimos. Eu achava que a brevidade da conversa dependeria da
energia limitada dele, aos 92 anos. Mas o teólogo manda às favas a minha
suposição: ele está planejando uma nova viagem para a Coreia ainda em
março.
Eis a
entrevista.
Sr. Moltmann, o seu livro
“Teologia da Esperança” foi publicado em 1964 e teve um grande sucesso. Desde
então, o seu nome está irreversivelmente ligado à confiança. Houve momentos na
sua vida em que a resignação tomou conta do senhor?
É claro! Em 1945, em um
acampamento de prisioneiros de guerra na Bélgica, eu estava tão mal
que queria morrer. Um marechal me arrastou para uma enfermeira. Sobrevivi.
No campo dos prisioneiros de
guerra, o senhor chegou à fé.
Eu estudara as poesias de Schiller e
de Goethe. Mas, na lama do campo de prisioneiros, elas não me diziam mais
nada. Depois, recebi uma Bíblia de presente. No começo, eu li os Salmos de
lamentação do Antigo Testamento, que deram voz à minha desolação, à minha
sensação de estar abandonado por Deus. E Jesus abandonado na cruz me convenceu
do amor de Deus.
Os Salmos de lamentação também
não parecem ser particularmente encorajadores.
Mas me oferecem palavras para a
minha dor.
Então, a esperança está na
resignação?
Não, os Salmos de
lamentação expressam o lamento, não a resignação. Ter esperança foi muito
difícil para mim, mesmo depois da morte da minha esposa há dois anos. A
tristeza e a felicidade que tive com ela e que continuo tendo, me ajudaram a ir
além da resignação. Enquanto ela tivesse palavras para expressar a sua dor, ela
não se resignaria.
O senhor tem 92 anos; eu, 32. O
que aconselha a um homem da minha idade para que não se torne duro e
amargurado?
Por que você quer se tornar duro
e amargurado? Você não sofreu nem a guerra nem a prisão. Seja corajoso!
Para muitos da minha geração,
porém, o futuro parece bastante inseguro.
A juventude perdeu o espírito de
aventura (risos). Quando nós tínhamos a sua idade, queríamos mudar o mundo
inteiro. A esperança realmente perdeu forças na Alemanha.
Do que isso depende?
Do fato de que há alarmistas por
aí, criando pânico e prometendo segurança onde a segurança não existe. Eu venho
dos movimentos de renovação dos anos 1960 e 1970. Tínhamos o Concílio
Vaticano II na Igreja Católica e o movimento dos direitos
civis, “I have a dream”, com Martin Luther King. Discutíamos
sobre secularização e demitização e teologia feminista e teologia
da libertação. Portanto, tenho esperança nos jovens, em um novo movimento de
renovação na Igreja.
O que faz o senhor esperar nisso?
Fiquei surpreso e agradecido pelo
fato de o Jubileu da Reforma de 2017 ter sido celebrado
ecumenicamente. Espero que uma nova onda ecumênica invista sobre as Igrejas
na Alemanha.
Às vezes, o senhor não fica
decepcionado pelo fato de restar tão pouco daquilo que o senhor criou no
início? A sua teologia da esperança tem décadas, não conseguiu se impor. Em vez
disso, por toda a parte, há estagnação e insegurança.
Pelo contrário! Eu vejo os
cristãos em todo o mundo em renovação – na América Latina, as
Igrejas pentecostais; na Coreia, as Igrejas presbiterianas; e,
na África, as Igrejas de todas as confissões.
O bem-estar está em contraste com
a esperança?
Jesus era dessa opinião. Por
isso, em uma das suas parábolas, o jovem rico vai embora triste.
Isso significa que a fé na
Alemanha não tem grandes chances enquanto a Alemanha estiver bem?
Não, a fé é independente das
circunstâncias. Mas as circunstâncias determinam a Igreja. Elas ainda são
privilegiadas. Desde a virada constantiniana, as Igrejas na Alemanha e
em muitas partes do mundo ocidental têm sido Igrejas de Estado – algo do qual
eu, como aposentado, naturalmente tiro proveito. Mas a Igreja perderá esses
privilégios.
O futuro da Igreja poderia estar
em uma estrutura da Igreja livre?
Os noruegueses eram luteranos de
nascimento. Isso levou a Igreja norueguesa e o bispo Eivind Berggrav à
resistência contra a ocupação alemã. Se a Igreja Evangélica na Alemanha não
tivesse sido uma Igreja do povo, em 1945 não poderíamos ter falado em nome de
todo o povo alemão com a declaração de Stuttgart de admissão
de culpa. Uma Igreja livre fala apenas em nome dos seus adeptos, uma Igreja do
povo fala em nome de todo o povo. Ambas as coisas têm vantagens, mas a Igreja é
formada pelo povo, e não pelo bispo, nem mesmo pelos sínodos. O povo constitui
a Igreja e muda a Igreja.
O povo da Igreja do povo são as
comunidades, as paróquias?
Não, o povo inteiro. No Natal,
70% dos habitantes de Tübingen vão à igreja. Nas missas
solenes, de 800 a 1.000 pessoas vão à igreja colegiada. O cristianismo vive nas
suas festividades: Natal, Sexta-feira Santa, Páscoa, Pentecostes.
Todo o resto poderia ser
ignorado?
Não, mas também devemos prestar
atenção nisso.
O que o senhor escreve sobre o
futuro da Igreja às vezes dá a impressão de que deseja uma Igreja organizada à
maneira de uma Igreja livre.
Não, eu dou valor à comunidade
independente. No meu livro, eu descrevo como funciona bem na Jakobsgemeinde aqui
em Tübingen. Eles têm 20 grupos que se encontram nas casas, e, em
todos os domingos, a igreja está cheia. É preciso chegar 15 minutos antes para
encontrar um lugar. Esse é meu ideal. As superestruturas certamente são
bonitas, mas devem estar a serviço da comunidade independente. Na metade Sul do
mundo, está nascendo um novo cristianismo! A Igreja daqui pode aprender muito.
São Igrejas que nunca foram Igrejas de estado nem religiões cristãs nacionais.
São Igrejas que representam minorias em países budistas ou xintoístas, em
países islâmicos ou socialistas. Na China, as Igrejas domésticas
atraem e crescem. Aqui, cada um pertence a um distrito eclesial, mesmo que
nunca vá à paróquia.
Isso significa que o senhor acha,
por exemplo, que o imposto para a Igreja também deve ser removido?
A esperança não está em negar,
mas em ver as coisas positivas. A comunidade viva – e há milhares delas
na Alemanha, além da Jakobsgemeinde de Tübingen –
regulamenta as suas questões de forma independente. Celebra e organiza o culto
sozinha, quando não tem pastor. E as pessoas que se encarregam dela – eu não
gosto dessa expressão e (Ehrenamtliche) porque se refere ao cargo (Amt)
– fazem a celebração. Há pessoas inteligentes o suficiente para fazer a
pregação e explicar a Bíblia.
Qual conceito preferiria?
A comunidade reunida. Todos levam
os seus dons a ela. O sacerdócio comum de todos os fiéis deve ser vivido de
maneira mais forte pelos evangélicos – e também pelos católicos.
O senhor dedicou o seu livro mais
recente ao presidente do Conselho da Igreja Evangélica Alemã, Heinrich
Bedford-Strohm. Ele é a favor da chamada Teologia Pública, que levanta
interrogações sobre a relevância da teologia para a sociedade e, por isso, está
interessada em participar dos debates. É uma adequada “sucessora” da Teologia
da Libertação?
Não, a Teologia da
Libertação se inclina pelas lutas sociais. A Teologia Pública indica,
por sua vez, as comunicações oficiais da Igreja à opinião pública. Às vezes,
elas coincidem, mas não necessariamente. A Teologia Política e a Teologia
da Libertação eram proféticas. O trabalho de opinião pública da Igreja o é
apenas raramente.
Deseja, às vezes, que a Igreja
eleva mais a sua voz?
Sim.
O senhor escreve que sente falta
de um claro “não”, como, por exemplo, a Igreja confessante havia formulado na
declaração teológica de Barmer contra a “requisição” de Jesus por parte dos
nazistas. Mas a Igreja não deve permanecer em diálogo para contribuir com a
unidade?
Se quiser produzir unidade, deve
estar em diálogo, sim. Mas não havia unidade entre os cristãos alemães e a
Igreja confessante. A unidade nem sequer era desejada por ambas as partes.
E, transferindo esse discurso
para hoje, o senhor diria – o que atualmente muitas vezes se pede – que se deve
falar com as direitas?
Eu não falaria com Höcke,
mas com Gauland, sim.
Onde estabelece a fronteira?
Aquilo que se torna nacionalista,
em que se faz apelo à comunidade do povo alemão, me faz lembrar da minha
juventude e do nacional-socialismo. É aquilo que eu detesto mais
profundamente.
A Igreja deve pôr limites mais
claros sobre isso?
A Igreja Evangélica, no Sínodo
do verão de 1945, em Treysa, mudou o próprio nome. Até aquele
momento, chamava-se de Igreja Evangélica Alemã. Desde então, chama-se Igreja
Evangélica na Alemanha. Desse modo, a fronteira está
marcada. Eu não sou um cristão alemão, mas sim um cristão na Alemanha. A
Alemanha é o lugar onde eu vivo, e não o sinal da minha fé. A Igreja universal
existe na Alemanha e existe na Coreia, no Brasil,
na Nicarágua e na Inglaterra. E os laços
ecumênicos tornam-se mais fortes do que os nacionais. A democracia na Alemanha
é tão forte que também sobreviverá à AfD (Alternative für
Deutschland).
Esse partido não o preocupa?
Parece-me que tudo o que a AfD faz
desperta sensações. Eu não reconheço nesse partido uma alternativa para a Alemanha.
Do que depende o fato de seu nome
ser conhecido para além das fronteiras da teologia e da Igreja, de que até
mesmo nomes como Helmut Gollwitzer, Hans Küng ou a sua esposa, Elisabeth
Moltmann-Wendel, tenham importância fora da Igreja, mas ninguém mais conhece os
teólogos ou teólogas hoje, exceto, talvez, Margot Käßmann?
Eberhard Jüngel, Wolfhart
Pannenberg, esses sim eram nomes que, na minha geração, eram conhecidos. Também
por Johan Baptist Metz, o inventor da nova Teologia Política.
E por que a teologia hoje não se
impõe mais, não é mais interrogada sobre questões controversas, embora seja
exercida como Teologia Pública?
Não sei.
Por que Heinrich Bedford-Strohm
não se impõe?
Porque é bispo. Ele deve reprimir
sua opinião sobre a paz e o pacifismo, para dar voz à Igreja inteira.
O senhor acha isso certo?
Ele tem uma tarefa diferente de
nós, livres profetas. Se eu tivesse que cuidar de paróquias e igrejas, seria
muito mais prudente.
Desejaria que os bispos pudessem
ser mais abertos?
Martin Niemöller falou
claramente quando era presidente da Igreja em Hesse. Não se
irritaram com ele por causa disso.
Talvez isso dependa do fato de a
Igreja estar mais atenta ao diálogo, em vez de assumir um lado, como o senhor
faz ou como a Teologia da Libertação fez?
Margot Käßmann tomou posição
pelo Afeganistão. Eu fiquei contente em ouvir a sua voz.
Bedford-Strohm, junto com o
cardeal Marx, deu as boas-vindas aos refugiados na estação de Munique em 2015.
Ele está do lado da decisão
de Angela Merkel naquela época, o que lhe rendeu inimizades. Eu o
admiro por isso.
Desejaria que mais pessoas da
Igreja tomassem posição desse modo?
Sim.
Falemos um pouco de Teologia
Política e de algumas questões controversas destes dias: o que Jürgen Moltmann
diz sobre os limites de velocidade nas rodovias?
Eu vendi o meu carro no ano
passado, depois de um acidente, e não dirijo mais. Sou decisivamente a favor
dos limites de velocidade nas estradas estaduais e nas rodovias.
Seria uma limitação de liberdade?
Não, a prudência faz parte da
liberdade.
O que Jürgen Moltmann diz sobre a
alimentação vegetariana?
Eu tenho quatro netos, dois
são veganos, e dois, caçadores. Dois vão caçar animais, dois renunciam à
carne.
E o senhor?
Eu me alimento também de carne.
Não posso mais esperar uma mudança semelhante do meu corpo. Eu engordei nos
anos da fome na guerra e no pós-guerra, e como tudo o que tenho no prato. Como
concessão aos meus netos veganos, eu limito o meu consumo de carne e como
uma dieta vegetariana às sextas-feiras.
O que Jürgen Moltmann diz sobre
uma linguagem não sexista?
Eu me esforcei, escutei a minha
esposa e evitei a linguagem machista.
Como está indo?
Leia os livros da minha esposa e
meus.
São apenas três temas sobre os
quais se discute hoje de forma acalorada. Por que essas questões despertam
emoções tão fortes?
Esses temas já eram discutidos de
maneira acalorada quando eu era jovem. Tudo se repete. Ficávamos orgulhosos
quando o piloto Rosemeyer andava a quase 500 km/h na estrada. As
lojas de produtos naturais e ecológicos já existiam quando eu era jovem, hoje
são chamadas de “lojas orgânicas”. “Todos os seres humanos se tornam irmãos” –
essa limitação já foi questionada durante a Revolução Francesa. Todos os
seres humanos se tornam irmãos, exceto as irmãs. “Liberdade, igualdade,
sororidade” é o título de um livro da minha esposa – mas fui eu quem o
inventou.
Na sua opinião, o que mais
incidirá sobre a Igreja Evangélica ou as Igrejas na Alemanha nos próximos anos:
o movimento mundial pentecostal ou a digitalização?
Nem uma coisa nem a outra. O
Evangelho e a fé incidirão sobre a Igreja.
O senhor sabe que está sendo
“substituído” no Twitter [com uma conta falsa]?
Meu amigo e vizinho me mostrou as
máximas que um farmacêutico de Pforzheim publica todos os
dias.
O senhor sabe quem está por trás
disso! Já se encontrou com ele?
Não.
E o que pensa sobre o que ele
faz?
Não posso impedi-lo (risos).
Mas o senhor não se envolve mais?
Eu já tenho o suficiente para
fazer com a minha máquina de escrever de viagem.
Vou lhe enviar o texto da
entrevista por fax, para a autorização.
Melhor não. Meu fax já está
estragado. Envie pelo correio.
A digitalização lhe desperta
esperança?
Não. Mas não me ocupei a fundo do
assunto.
O senhor acha que esse
desenvolvimento pode ter um papel para a Igreja?
Aquilo que tem um papel para os
seres humanos também tem um papel para a Igreja.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/587733-sejam-corajosos-entrevista-com-juergen-moltmann
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