Entrevista, realizada na Universidade
de Munique, na Baviera (22 de outubro de 1979). Ainda é interessante, não só
para compreender o percurso teórico do teólogo recentemente falecido, mas
também para a história da teologia, enquanto se estende de sua atividade
acadêmica até os limiares da grande obra “Teologia sistemática”, composta
nos anos Oitenta e Noventa. É de notar que Pannenberg entra no Catálogo
Queriniana desde 1974; e tem sete títulos na Biblioteca de teologia
contemporânea, além de algum título menor no Giornale di teologia. A “Teologia
sistemática” em três volumes – uma grande obra da teologia do século vinte
– é integralmente disponível em quatro idiomas: o original alemão, o
inglês-americano e a língua italiana, disponível também em português.
A entrevista foi
realizada pela Universidade de Munique com o teólogo Wolfhart Pannenberg e reproduzida por Rosino
Gibellini no livro Teologia e Ragione. A notícia foi
publicada pelo boletim eletrônico Teologia@Internet, 26-09-2014. A
tradução é de Benno Dischinger.
Pannenberg foi o teólogo
que conhecia como poucos a história do pensamento cristão.
Eis a entrevista.
Prof. Pannenberg, Você
completou os seus estudos universitários de filosofia e de teologia primeiro em
Basiléia e depois em Heidelberg. Como vê hoje o ensinamento de seus grandes
mestres: Karl Barth, Gerhard von Rad, Nicolai Hartmann, Karl Jaspers e Karl
Löwith?
W.P: Em
teologia certamente o meu débito maior é com Karl Barth e Gerhard von Rad. Do grande estudioso
veterotestamentário de Heidelberg adquiri uma perspectiva de teologia
da história, que eu depois procurei estender ao cristianismo primitivo e à
história da igreja e que transpus numa concepção sistemática. A permanente
proximidade do meu pensamento a Karl Barth escapou em geral aos meus
críticos. Mas, na realidade há um vasto acordo com os pensamentos fundamentais
de Barth – a soberania de Deus, a singularidade de sua revelação em
Cristo, a universalidade da teologia – também se depois cheguei à convicção que
estes pensamentos fundamentais deviam ser desenvolvidos numa via de todo
diversa daquela praticada pelo próprio Barth. Principalmente o pensamento
da soberania de Deus sobre o mundo não pode encontrar aplicação na forma de uma
dualística contraposição de Deus à realidade natural, mas, se Deus é o Criador
de todas as coisas, então o teólogo deve partir da confiança de que a presença
de Deus constitui tudo o que é. Neste sentido, o meu modo de proceder em
teologia, orientado mais historicamente ou, dito em termos mais gerais,
orientado empiricamente, é inspirado pelo pensamento barthiano da soberania de
Deus. Dos meus mestres de filosofia nenhum foi de importância tão duradoura. Em Karl Löwith me atraía o seu esforço de busca dos
pressupostos teológicos da filosofia da história, que durante os meus anos
heidelbergianos de estudo me parecia convergir com o trabalho teológico de Gerhard
von Rad, embora fosse claro que para von Löwith a dependência da
filosofia da história de pressupostos teológicos valia antes como argumento de
crítica. Sua própria posição de um retorno a uma compreensão pré-histórica,
‘natural’ do mundo sempre me pareceu estranha. Karl Jaspers mediou-me a
posição do protestantismo liberal, que reconhece o tema da religião como
essencial para o ser - humanos, mas que nutre, todavia, reservas nos confrontos
do cristianismo. Também hoje ainda me parece necessário fazer frente
intelectualmente a semelhantes questões críticas dirigidas à teologia. Todavia,
como filósofo Jaspers não conseguiu, no decurso do tempo, convencer-me,
por causa de sua sub-valoração da tarefa de uma penetração
conceitual-filosófica da experiência do mundo: a esta ele deixava
demasiadamente em função do positivismo de cada ciência e limitava a filosofia
a uma auto-compreensão do homem sobre sua situação vital. No que se refere à
exigência de uma penetração filosófica da experiência do mundo, recebi mais
impulsos de Nikolai Hartmann, que me introduziu na grande tradição
filosófica. Todavia, tornei-me rapidamente convicto que Hartmann, em sua
tentativa de renovação da metafísica permanecia demasiado dependente do
neokantismo. O meu mestre de filosofia mais importante foi depois Hegel,
que de certo modo redescobri sozinho, quando como livre docente preparava, em
1956, as minhas primeiras aulas sobre história da teologia do século XIX.
Sua Habilitationsschrift
de 1955 sobre o tema Analogia e Revelação permaneceu como “Incompleta”, pelo
menos até agora e ainda não foi publicada. Como se coloca este trabalho no
contexto de se iter teológico, e quando a obra será completada e publicada?
W.P:
Minha
Habilitationsschrift de 1955 sobre Analogia e Revelação permaneceu
incompleta principalmente por um motivo extrínseco, porque a partir de 1961 eu
estava todo preso no fazer frente aos ataques ao programa Revelação como
história. Em conexão com isto pareceu-me, então, necessário escrever também uma Cristologia,
para aplicar este programa a uma central da teologia cristã. Mas, há também um
motivo mais profundo no fato de que minha Habilitationsschrift tenha
permanecido incompleta. A história do conceito de analogia devia ser exposta a
partir da filosofia pré-socrática até o nosso século e, enquanto em 1955 eu
tinha chegado somente ao século XIII, nos anos seguintes continuei a exposição
até Kant. Mas depois, durante o trabalho chegou um deslocamento nas minhas
concepções em discussão com a doutrina da analogia. Sobretudo então eu não
estava satisfeito daquilo que se me propunha com a palavra-chave “Revelação” para
uma fundamentação alternativa do discurso teológico sobre Deus nos confrontos
da doutrina da analogia. Toda a minha evolução teológica pode ser compreendida
como um contínuo estar envolvido com este problema. Há aí, sobretudo uma
estreita conexão entre minha crítica ao conceito de analogia e a evolução de
minha teologia da história na linha da teologia franciscana do tardio século
XIII e do século XIV com sua acentuação da contingência do agir divino. O ponto
de partida para isto encontra-se já na minha crítica a Duns Scotus, em minha dissertação de Heidelberg de
1953. A alternativa à doutrina da analogia para uma fundamentação do discurso
cristão sobre Deus, que há alguns anos considero para mim tê-la encontrado, até
agora a expus de modo sistemático somente nas minhas lições acadêmicas de
dogmática. E deverá ser publicada um dia desta forma. Mas, antes há outros
projetos. Após o que voltarei voluntariamente a empenhar-me com a história do
conceito de analogia.
Quando começou o
Heidelberger Kreis, que teria dado o seu fruto maior no fascículo-programa
Revelação como história em 1961? Como funcionava o Círculo? Como se dissolveu?
E que coisa resta do trabalho feito e dos projetos cultidvados?
W.P:
O Heidelberger
Kreis nasceu da necessidade de nós estudantes de Heidelberg ganharmos
uma visão global da teologia, que nos professores de Heidelberg encontrávamos
na disparidade das várias disciplinas, e isto na base do trabalho de Gerhard von Rad, que se apresentava como prometedor de uma
nova orientação para toda a teologia. O escrito programático Revelação
como história, de 1961, fez depois a tentativa de coligar exegeticamente
teologia histórica e teologia sistemática, em referência, sobretudo ao
problema, que então sob o influxo de Karl Barth era considerado como
fundamental, do conceito de revelação. O Círculo de Heidelberg, já a
partir de 1951, em suas reuniões primeiramente semanais, e sucessivamente, após
a partida de Heidelberg de alguns membros do Círculo a
intervalos mais distanciados, havia tratado de modo análogo toda uma série de
outros temas teológicos, e precisamente mediante uma nova formulação das
questões dogmáticas na base dos resultados da ciência exegética e histórica
sobre os referidos temas. Os membros do Círculo tinham de tempos em
tempos a função de se tornarem intérpretes de uma disciplina teológica
específica e de fazê-lo de modo que nas discussões as suas problemáticas não
viessem a ser desatendidas. O Círculo se dissolveu pouco após a
aparição de Revelação como história. Junto aos motivos pessoais agiu um
importante motivo de fundo: com o tempo não houve mais um pleno acordo sobre a
importância fundamental da Ressurreição de Jesus para a teologia vista na sua
totalidade. Alguns membros do Círculo não queriam mais ver esta questão como a
questão fundamental. E, como o Círculo desde o início se propusera
não só de discutir, mas de chegar de quando em vez a uma concepção que pudesse
ser compartilhada por todos os membros, parece então conveniente pôr fim ao
trabalho comum.
Nos anos sessenta a
teologia alemã foi influenciada pela filosofia de Ernst Bloch. Você mesmo
escreveu em 1965 um ensaio muito citado, de título O Deus da esperança, que
revela inspiração da filosofia da esperança de Bloch. Como avalia hoje
complexivamente a influência de Ernst Bloch sobre a teologia?
W.P:
O
influxo de Ernst Bloch sobre minha teologia foi com frequência
supervalorizado. Eu li Bloch pouco antes de terminar o meu livro de Cristologia,
e, portanto somente em 1963, enquanto Moltmann já há tempo e muito
mais profundamente tinha sido influenciado por ele. E constatei certa
convergência da direção escatológica da minha teologia com o pensamento de Bloch;
estava, pois, pronto em 1965 à miscelânea em honra de Bloch. Em referência
ao alargamento filosófico da perspectiva, descoberta originariamente a partir
da Cristologia e, em espécie, a partir da tradição da páscoa,
reconheço ter recebido impulsos de Ernst Bloch. Mas, Bloch jamais
colocou a questão no modo pelo qual a mim parecia que fosse posta, isto é, no
sentido de uma rigorosa prioridade ontológica do futuro como futuro de Deus.
Por isso a possibilidade de aprender de Bloch era para mim limitada.
Acrescente-se a isso que a rigorosidade do conceito filosófico jamais foi a
força do pensamento de Bloch. Ele foi antes um grande escritor que
empregava toda a vastidão de sua cultura para dar colorido a um quadro
visionário, que traía sua inspiração de uma conjunção de fé judaica e marxismo. Bloch,
no entanto jamais atingiu o rigor do trabalho conceitual de um Aristóteles,
de um Kant ou de Hegel.
Em 1973 apareceu junto à
prestigiosa Cada Editora Suhrkamp de Frankfurt a sua obra Epistemologia e
teologia. Esta obra tem sido vista por alguns críticos como um “ir além e
contra Barth”. Como avalia Você esta sua obra no contexto da teologia alemã do
nosso século?
W.P:
O
meu livro Epistemologia e teologia de 1973 nasceu no quadro de um
projeto mais vasto, de uma interpretação teológica da razão, que deveria
assumir a forma tanto de uma exposição histórica como também sistemática da
crítica da consciência. Ao conceito de ciência era dedicado no quadro deste
projeto um capítulo, que acabou por superar os seus limites. Além disso, a
intensa discussão epistemológica daqueles anos sugeria tratar previamente este
tema num livro específico, a fim de dar destaque à teologia na base daquela
discussão geral. O livro tem, pois, aos meus olhos um valor parcial. Isso
assinala o ponto no qual minha fadiga por uma renovação, fundada a partir do
espírito da escatologia, da doutrina filosófica do conhecimento de uma parte, e
da tradição ontológica e metafísica da outra, se intercalava com as
problemáticas atuais do nosso tempo.
Por diversas vezes você
falou de uma Teologia da razão, que gostaria de escrever. Para quando prevê a
realização de tal projeto?
W.P:
O
projeto de uma teologia da razão foi desenvolvido por diversas vezes em forma
de lições e existe nesta forma. O meu propósito inicial era aquele de
reelaborar este projeto mediante uma utilização mais ampla da história da
teoria filosófica do conhecimento, como também da discussão atual das questões
conexas. Desse modo, no entanto, resultaria uma obra em mais volumes, que me
afastaria demasiado de outros compromissos mais urgentes. Acabei por dar a
precedência a este projeto ao meu livro de antropologia, que estou ultimando,
ao qual presumivelmente deveria seguir uma monografia sobre a eclesiologia.
Somente quando estiver ultimada uma apresentação global da dogmática do ponto
de vista da doutrina sobre Deus, retornarei a temas mais filosóficos, ao
projeto de uma teologia da razão e de uma interpretação da tradição ontológica
a partir da perspectiva da escatologia.
Tem sido escrito que
alguns ensaios seus são a expressão mais clara de uma Hegelrenaissance em
teologia. Como você vê a relação de seu pensamento com Hegel e, mais em geral,
da teologia cristã moderna com Hegel?
W.P:
É-me
difícil delinear, no breve giro de algumas frases, a minha relação com a filosofia
de Hegel. Por um lado, considero Hegel como o maior filósofo da época
moderna. Ele é simultaneamente o filósofo que se situa ante o cristianismo com
a maior abertura. Mas, há motivos, que há alguns anos expus numa análise sobre
o significado do cristianismo na filosofia de Hegel, os quais vetam que a
teologia cristã se possa identificar simplesmente com a filosofia de Hegel.
No entanto, eu de fato não me considero um hegeliano, embora alguns dos meus
discípulos tenham enveredado por esta estrada. Para mim, Hegel representa
o maior desafio para um contra-projeto, que não seja pelo menos do nível de sua
reflexão didática, mas que deve equiparar-se com isso.
Com frequência você faz
referência ao Iluminismo e à necessidade de aceitar o desafio lançado pelo
Iluminismo para uma racionalidade crítica também em teologia. Mas, de uma
parte, jamais faz referência às querelas sobre o Iluminismo introduzidas pelos
Francofortenses, e, da outra, Lhe foi criticado – por ex. por alguns
representantes da teologia da libertação – de não fazer as contas com o desafio
lançado pelo segundo Iluminismo, representado por Marx e pela filosofia da
práxis em geral.
W.P:
O Iluminismo
do século XVIII foi um fenômeno muito complexo. Em parte se dirigiu contra
o cristianismo, e até contra toda religião. Mas, talvez isto seja apenas uma
linha marginal. Em sua tendência de fundo o Iluminismo inglês, e também o
alemão, não era anticristão. Mas continha o desafio para uma reformulação dos
conteúdos religiosos e cristãos sobre o terreno da razão moderna. Neste sentido
me parece que o Iluminismo seja fundamental nos confrontos da orientação
pré-moderna da teologia que se confia a uma instância de autoridade que lhe
garanta de maneira prévia a verdade. Aquilo que, em conexão com o neo-marxismo,
se chama o ‘segundo’ Iluminismo da Escola de Frankfurt, a meu aviso, está
em conexão muito alentada com o Iluminismo. Na medida em que se trata de
marxismo e de neo-marxismo, eu acho que neste movimento é perdida a
universalidade da razão iluminista. Parece-me que ela sofra uma contradição a
favor de outra, desta vez marxista, por fé na autoridade. Com o marxismo me
confrontei com muito empenho desde os inícios de meus estudos em Berlim e
rapidamente cheguei ao resultado de que se tratava de um tipo de pensamento
significativo, mas também de todo datado no século XIX e desgastado para o
nosso tempo. Sem os países que hoje fundam o seu ordenamento social sobre uma
ideologia marxista, seria este também o juízo geral. A atualidade do marxismo
se funda menos sobre raízes racionais do que não sobre raízes políticas e
emotivas. Por isso, precisamente o neo-marxismo da Escola de Frankfurt me parece que represente um limite à
sua pretensão de introduzir uma renovação do Iluminismo. Por quanto diz
respeito aos teólogos da libertação, compartilho com estes teólogos o juízo
sobre a necessidade de uma renovação das estruturas sociais e também econômicas
da convivência humana, a partir o espírito cristão. Mas, eu não penso que o
marxismo, com sua envelhecida teoria da economia e com o seu messianismo
secularizado, seja de alguma ajuda. Parece-me que não seja a força, e sim a
debilidade dos teólogos da libertação, o fato de que eles estejam em vasta
medida dependentes do instrumental analítico do marxismo, ao invés de aprontar
um próprio instrumental da teoria da sociedade fundado sobre bases cristãs. Omarxismo é
hoje uma alternativa à fé cristã. Neste sentido, se pode aprender muito disso.
Mas, não se pode assumi-lo sem que vá perdida a integridade da perspectiva
cristã.
Como avalia a situação
atual da teologia da ‘ecumene’ cristã?
W.P:
A
unidade ecumênica cristã está no centro do emprego prático da minha teologia.
Uma cristandade ecumênica só pode ser pluralista, e sua realização será,
portanto, possível somente no terreno de uma compreensão da verdade que se
tenha libertado do dogmatismo e da intolerância dos séculos precedentes e,
precisamente por isto, torne possível uma nova validez universal do
cristianismo e uma correspondente ação por uma reestruturação também da
convivência social dos homens. Infelizmente a evolução dos últimos dez anos
mostra uma progressiva estagnação do processo ecumênico para a realização de
uma unidade dos cristãos. Estamos diante de uma resignação muito difusa.
Pode dar-se que da perspectiva de um país profundamente marcado em sentido
católico-romano em sua cultura e população não pareça tão urgente a necessidade
de uma unidade cristã. Mas, em vista da situação humana e especialmente em
vista da cultura ocidental em sua globalidade, não me parece possível nenhuma
brecha em direção a um novo futuro do cristianismo sem a superação das contraposições
confessionais. A chave da operação está nas mãos da Igreja católico-romana. Do Papa,
que se compreende como o supremo detentor do ofício da inteira cristandade, que
é responsável pela unidade de todos os cristãos, dever-se-ia esperar que ele se
fizesse intérprete no modo mais agudo possível não só da unidade da hodierna
igreja católico-romana, mas da unidade ecumênica de todos os cristãos. Os
diálogos ecumênicos sobre as contraposições doutrinais confessionais
progrediram nas últimas duas décadas muito mais do que pensa a maior parte dos
cristãos. Devemos perguntar-nos, diante desta situação, se as igrejas ainda
tenham o direito de permanecer separadas e se excluindo reciprocamente da
comunhão da eucaristia. É verdade, esta questão deverá encontrar gradual
solução nas tratativas recíprocas das igrejas. Mas, a iniciativa decisiva, sem
a qual nenhum progresso é possível na questão ecumênica, deve partir do Papa.
E, se do bispo de Roma devesse partir tal iniciativa, então a mesma
encontraria reconhecimento de sua pretensão de ser guia universal na
cristandade.
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