“A concepção romântica do desejo é
ilusória”.
René Girard, falecido em 2015, foi membro da Academia Francesa e professor de Literatura Francesa na Universidade de Stanford. Sua teoria do desejo mimético indica que entre o sujeito e o objeto não existe somente o desejo, mas também o modelo, o mediador do desejo, ou o rival. O conceito de mimesis aqui estabelece o ponto central da articulação. Desde as sociedades primitivas, o desejo mediado é o desejo causador dos conflitos. Pela imitação, aprendemos a falar, a andar e a desejar. E, pela imitação do desejo alheio, competimos e rivalizamos, dando início a um ciclo de violência, capaz de se atenuar pelo sacrifício, neste caso, de uma vítima que acaba por aliviar as tensões do coletivo, reestabelecendo a paz momentânea. Torna-se inevitável, dentro deste esquema, que também o ciúme e a inveja façam parte da mimesis do desejo.
René Girard, falecido em 2015, foi membro da Academia Francesa e professor de Literatura Francesa na Universidade de Stanford. Sua teoria do desejo mimético indica que entre o sujeito e o objeto não existe somente o desejo, mas também o modelo, o mediador do desejo, ou o rival. O conceito de mimesis aqui estabelece o ponto central da articulação. Desde as sociedades primitivas, o desejo mediado é o desejo causador dos conflitos. Pela imitação, aprendemos a falar, a andar e a desejar. E, pela imitação do desejo alheio, competimos e rivalizamos, dando início a um ciclo de violência, capaz de se atenuar pelo sacrifício, neste caso, de uma vítima que acaba por aliviar as tensões do coletivo, reestabelecendo a paz momentânea. Torna-se inevitável, dentro deste esquema, que também o ciúme e a inveja façam parte da mimesis do desejo.
Radicado nos Estados
Unidos há mais de 50 anos, Girard estudou o Antigo Testamento sob a ótica
sociológica e vê no cristianismo a primeira religião que consegue amenizar a
violência pelo expediente da crucificação.
Nesta entrevista, concedida à CULT, o historiador falou sobre alguns dos temas presentes naquele que é considerado seu mais importante livro, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, publicado originalmente em 1978 e lançado pela editora Paz e Terra. Nele, Girard aprofunda, através de diálogos com dois psiquiatras franceses, suas hipóteses sobre a violência, o desejo e a representação do sagrado, desenvolvidas a partir de temas de seu livro anterior, A violência e o sagrado.
Fala-se muito hoje em violência. Mas não vivemos uma época em que há maior
controle social e cultural da violência do que em qualquer outro período da
história?
René
Girard – Temos um grande controle da violência no
que se refere ao local. Entretanto, as pessoas não estão cientes da violência
em si. A mediação externa resolve o problema da violência de forma imperfeita
porque o faz através de uma vítima. Considero que temos paz no âmbito
individual, mas a ameaça está no coletivo. Tanto o rito quanto a proibição
somente adiam a explosão da violência.
Sistemas religiosos como
o cristianismo atuam no sentido de conscientizar sobre o uso da vítima
expiatória. E não existe uso deste mecanismo de forma consciente. O bode
expiatório é inconsciente, ou não é.
Em um nível
exponencialmente maior, estamos lidando hoje com a possibilidade da destruição
total, do uso da violência em termos absolutos, através do crescente desenvolvimento
de tecnologias novas como a nanotecnologia — manipulação de partículas que
podem desencadear reações de potencial altamente destrutivo.
Assim como Peter Gay, o senhor afirma que o coletivo é assassino por natureza
e não o homem. Poderia explicar?
RG
– Penso que o indivíduo não é assassino em
sua natureza e, sim, o coletivo. As descobertas coletivas são perigosas em
vários aspectos do desenvolvimento humano.
A primeira metade do
século 20 foi intensamente bélica. O século 21 traz novos desafios e
preocupações, que são o desenvolvimento científico e as descobertas para as
quais não estamos novamente preparados.
Acredito que nossa
natureza mimética é responsável pela tendência das multidões de focalizar sua
violência em um único indivíduo que se transforme, arbitrariamente, no bode
expiatório de alguma comunidade. A matança unânime de uma vítima inocente, no
passado, pacificava multidões perigosamente perturbadas e tornou possível sua
estabilização.
Acredito que o bode
expiatório tem um papel essencial na criação e na perpetuação de religiões
arcaicas. As culturas arcaicas foram essencialmente a repetição de sacrifícios
religiosos, evacuando a violência interna através destas vítimas substitutas.
Isto não significa que eu recomende o mecanismo do bode expiatório para a
manutenção da paz dentro das comunidades. Uma vez que o ciclo do sacrifício é
compreendido, ele perde sua eficácia, como uma arma contra a violência interna.
Os deuses arcaicos, na
minha opinião, são vítimas da matança daqueles que põem fim à violência
disruptiva e são considerados divindades da violência e da paz.
Thomas Mann se perguntava: “Não é a paz um elemento de corrupção civil e a
guerra purificação, liberação, uma enorme esperança?” O rito sacrificial – o
uso da violência para apaziguar ânimos – vem sendo há muito tempo discutido
pela literatura universal?
RG
– Não concordo que a guerra traga
purificação. Na literatura há comentários sobre o comportamento mimético tanto
do desejo, quanto da violência. O rito sacrificial é arcaico, é gênese da
violência humana. O uso do bode expiatório está presente na literatura, como em
Shakespeare, por exemplo.
Esta declaração do jovem
Thomas Mann reflete a atitude à época do início da Primeira Guerra e foi
compartilhada por muitos ingleses e franceses. Este espírito durou até,
aproximadamente, 1916. Estas opiniões sofreram mudanças extremas devido às
terríveis perdas da guerra e do progressivo aumento do poder militar.
Mann era muito
comprometido e leal às ideias antinazistas e perdeu sua crença no poder
enobrecedor do aparato de guerra. Concordo com o Thomas Mann mais velho. No
futuro, ou não haverá nenhuma guerra como aquelas do século 20, ou nós veremos
a destruição da civilização.
Em Coisas ocultas desde a fundação do mundo, o senhor diz que os ritos sacrificiais
perderam força sob influência do judaísmo e do cristianismo. No que concerne à
relação entre Israel e Palestina, existe o uso do mecanismo sacrificial?
RG
– Devemos tentar ver todos os conflitos e
guerras que temos hoje sob a ótica do mecanismo mimético. Mimesis tanto
do desejo, quanto do uso da violência. No cristianismo, quebra-se o ciclo.
Cristo oferece a outra face e redime seus algozes. Não busca vingança, não
derrama mais sangue. É pela cruz, pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo
de violência. O cristianismo mostrou que a sociedade humana produzia vítimas
únicas. A crucificação desobstruiu o caminho para o entendimento do processo da
vítima expiatória.
Mimetizamos o desejo e também a violência? Ou, ao mimetizar o desejo, criamos
a violência?
RG
– Sim, as duas sentenças estão corretas.
Criamos rivalidade na mimesis, competindo pelo mesmo objeto,
desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do
prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser
insuficiente. Constatação está muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o
intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de
tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o
objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E
também dos conflitos.
Para Freud, o mal-estar do homem moderno ocorreria devido à repressão de sua
violência natural, que gera outros problemas de ordem interna e também
conflitos sociais de diferentes naturezas. A teoria de Freud não vem de
encontro à sua?
RG
– Sim, há uma oposição entre as ideias de
Freud e as minhas. Muitos diriam que tanto na repressão da libido em Freud,
quanto no uso do mecanismo de vítimas arbitrárias para aplacar explosões,
reside uma ideia similar. Mas não concordo com Freud e com sua teoria de que
tudo está relacionado ao desejo sexual. Freud justifica todo comportamento
humano baseando-se nesta ideia. Ele foi o primeiro a ver a profunda influência
que uma pessoa tem sobre a outra. Mas discordo de sua visão de que a influência
dos pais delinearia a personalidade. A visão de Freud ficou muito restrita ao
período em que viveu, no qual predominava um certo tipo de estrutura familiar.
E quanto àqueles que somente desejam o impossível? Ou, como disse
Kierkegaard, “cometem o pecado capital de não querer nada profunda e
autenticamente”?
RG
– Minhas ideias estão bem mais próximas às
de Kierkegaard do que foi visto nas entrevistas que dei e nos artigos escritos
sobre minha obra. Para mim, o desejo do impossível e o não-desejo ainda
estariam de acordo com mecanismos miméticos.
Kierkegaard constatou,
em sua análise dos três estágios do ser, a presença de um homem que se escora
no outro. Possuindo um vazio existencial aterrador, ele procura na observação
do outro, do que o outro possui, do que o outro aparenta, uma forma de saber
quem é e como sentir-se pleno. Portanto, para ser ele mesmo, este homem
necessita tomar conhecimento do outro, como no mecanismo do desejo mimético,
onde este desejo somente se faz possível pela intermediação do que é e deseja
um outro.
Por Melissa Antunes de Menezes
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