sábado, 9 de janeiro de 2016

293 - Entrevista com Veronika Kubina-Schlier, filha do grande exegeta alemão Heinrich Schlier


Por ocasião do trigésimo aniversário da morte de Heinrich Schlier, grande exegeta luterano convertido ao catolicismo em 1953,30Dias resolveu recordá-lo entrevistando Veronika Kubina-Schlier, a mais nova de seus quatro filhos. A professora Kubina-Schlier, também convertida ao catolicismo ao final dos estudos secundários, aceitou gentilmente adentrar algumas passagens da vida de sua família; passagens que esclarecem mais ainda, caso haja necessidade, o testemunho cristão de Heinrich Schlier. 
A senhora pode nos dizer alguma coisa sobre a história de sua família? Algum de vocês prosseguiu no caminho dos estudos teológicos e exegéticos que seu pai percorreu?
VERONIKA KUBINA-SCHLIER: A história de nossa família não é muito conhecida. Meu pai vem de uma família de médicos; minha mãe, de uma de comerciantes. Somos quatro irmãos, que escolheram profissões muito diferentes: um é físico, outro é especialista em economia política, uma é professora e jornalista; somente eu, a mais nova, de certa forma segui as pegadas de meu pai e de minha mãe, que foi teóloga evangélica. Completei meus estudos de Teologia em Friburgo em Brisgóvia em 1974, com um doutorado sobre o Livro de Jó orientado pelo professor A. Deissler, e trabalho ainda hoje como teóloga. 
Que reflexo tinham em sua família as pesquisas, as descobertas e os aprofundamentos feitos por seu pai nos campos exegético e teológico, e o diálogo que ele desenvolveu com outros grandes estudiosos, como Karl Barth, Rudolf Bultmann, Hans-Georg Gadamer, Martin Heidegger, Erik Peterson, entre outros? A senhora conheceu pessoalmente algum deles? 
KUBINA-SCHLIER: Minha mãe apreciava muito o trabalho de meu pai, e o acompanhou ao longo dos anos de modo competente e crítico. Com a família, raramente meu pai falava de seu diálogo com esses que o senhor chama “outros grandes estudiosos”; é preciso dizer também que não eram muitas as ocasiões para fazê-lo, visto que nossa vida familiar ainda sofria, nos anos do segundo pós-guerra, as consequências incômodas daquele tempo: os riscos a que meu pai tinha-se submetido, a destruição de nossa casa em Elberfeld e a consequente separação dos locais de residência de meus pais. Rudolf Bultmann, Günther Bornkamm e Peter Brunner estavam ligados a nós, por serem nossos padrinhos; Erik Peterson, de vez em quando, nos fazia uma visita em Bonn. Pelo que nos contou nossa mãe, vim a saber muitas coisas sobre seus anos de estudos e seus grandes mestres; depois desse período, pude conversar também com meu pai sobre isso, já numa atmosfera menos tensa. 
Um momento particularmente significativo, não apenas da biografia, mas também da evolução do pensamento de seu pai, parece ter sido a oposição aos Deutsche Christen (os cristãos evangélicos nacionalistas) durante os anos do nazismo. A senhora se lembra de alguma coisa, talvez de como ele se referia a isso posteriormente? 
KUBINA-SCHLIER: O período nazista, para meu pai, não foi um simples momento ou um episódio: sua vida e seu pensamento teológico foram marcados de maneira decisiva pela ideologia dos nazistas e pelos acontecimentos político-eclesiais. Como cristão e homem de visões políticas claras, meu pai (como também minha mãe) soube, desde o início, dar um juízo lúcido sobre o movimento dos “camisas pardas”, resistindo sempre que foi possível: como personalidade de destaque da Igreja confessante (Bekennende Kirche), por exemplo, meu pai deu uma contribuição decisiva para a fundação do Ateneu Teológico de Elberfeld, e foi seu diretor clandestino. Quando o Estado proibiu a atividade do Ateneu, logo depois de sua abertura, em 1935, meu pai não hesitou em devolver, naquele mesmo ano, sua venia legendi [permissão para lecionar, ndr.] a Marburg, explicando seu gesto pela recusa a permanecer, como princípio, num “cargo de ensino que lhe era conferido pelo Estado”. A grave ameaça que o Estado nazista oferecia a sua vida (e também à nossa) determinou, entre outras coisas, a trágica separação de nossa família, que teve reflexos por muitos anos, mesmo depois do final da guerra. Meu pai não falava muito daqueles anos; era minha mãe quem mantinha viva a lembrança desse período para nós, crianças. 

Capas das edições em italiano, espanhol, português, francês, alemão e inglês de Sobre a ressurreição de Jesus Cristo, de Heinrich Schlier, Roma, Morcelliana-30Giorni, 2005

No breve relato biográfico em latim redigido no momento da acolhida de seu pai na Igreja Católica, ele foi definido um “homem profundamente religioso, de grande engenho, muito educado, humilde e reservado”. A senhora considera esses adjetivos adequados? Que outros, a seu ver, seria necessário acrescentar para descrever a personalidade de seu pai?
KUBINA-SCHLIER: Não me parece que uma lista de adjetivos possa fazer justiça a meu pai. Alguns testemunhos biográficos dados por outras pessoas e por ele mesmo, por exemplo em suas cartas, trazem uma imagem muito mais viva dele. Mas, se eu tivesse de acrescentar alguma coisa à lista de qualidades que aparecem no relato da conversão de meu pai, diria: vulnerável, cordial, crítico, espirituoso, generoso...
Como foi recebida por sua família e pelo ambiente que os cercava a passagem de seu pai para o catolicismo? Afinal, ele não era um simples fiel, mas um professor e um pastor evangélico. 
KUBINA-SCHLIER: Como aconteceu em Roma, a conversão de meu pai só foi acompanhada de longe por minha família; nós a aceitamos sem problemas. Graças à postura aberta e tolerante de meus pais, as palavras “evangélico” e “católico”, para nós, não eram termos de uma batalha. Como era previsível, as reações do ambiente ao nosso redor foram muito diferentes: foram desde o mais amplo júbilo (por parte dos católicos) e de uma aceitação amigável e cheia de compreensão, até a incompreensão e uma hostilidade oculta e maligna. Muitos amigos e colaboradores dos anos difíceis continuaram fiéis a meu pai, às vezes mesmo apesar de sérias divergências no mérito das questões. Nesse sentido, eu gostaria de citar apenas alguns nomes: Ernst Bizer, Helmut Gollwitzer, Hans-Georg Gadamer, Günther Bornkamm e Peter Brunner. 
O ano da morte de seu pai foi crucial para a Igreja Católica, o ano dos três papas: da morte de Paulo VI, da eleição e da morte inesperada do papa Luciani e, em seguida, a eleição de João Paulo II. A senhora se lembra de quais eram os sentimentos de seu pai por esses pontífices? 
KUBINA-SCHLIER: Não sei qual foi a relação de meu pai com esses papas. Apesar de sua obediência à hierarquia, ele preferia manter distância de “Roma”. Às vezes, citava uma frase de Erik Peterson: “Quem se converte tendo conhecido ‘Roma’ deve ter um amor profundo pela Igreja”. 
E em relação ao papa Ratzinger, que já era conhecido como teólogo desde os anos do Concílio Vaticano II, e que foi criado cardeal por Paulo VI em 1977, a senhora se lembra de alguma expressão de seu pai ou de algum episódio? A senhora sabe que no discurso de 10 de maio de 2003, na celebração do primeiro centenário da constituição da Pontifícia Comissão Bíblica, o cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tomou como modelo a conferência dada por seu pai em 1936 sobre a responsabilidade eclesial de quem estuda teologia? 
KUBINA-SCHLIER: Meu pai trabalhou de boa vontade com Joseph Ratzinger, em diversas comissões e em diferentes ocasiões: ele o apreciava como teólogo dogmático, mas lamentava, às vezes, sua pouca compreensão para com a teologia bíblica e de um pensamento modelado sobre a Bíblia. “É realmente um teólogo dogmático!”, disse ele uma vez, depois de uma semana de trabalho em comum num seminário. Eu não sabia dessa referência feita pelo cardeal Ratzinger a uma conferência de meu pai de 1936, mas, dada a predileção do atual Pontífice por citações de famosos estudiosos do passado, isso não me surpreende. 

Heinrich Schlier, Breve rendiconto. Il racconto autobiografico della conversione al cattolicesimo di uno dei più grandi esegeti del XX secolo, Roma, traduzido e publicado por Òmicron-30Giorni, 1999
Lemos em vários colegas e intérpretes da obra de seu pai que, já nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II, ele ficou um tanto isolado, quase realizando na prática o que ele mesmo tinha escrito no final de sua pequena obra autobiográfica Kurze Rechenschaft (Breve prestação de contas), ao dizer que a terra em que ele havia encontrado sua pátria era de certa forma uma terra estrangeira. Isso é verdade? Se sim, por quê? 
KUBINA-SCHLIER: Eu não saberia o que dizer sobre essa marginalização relativa de meu pai já nos primeiros anos do pós-concílio. Tanto no ambiente científico quanto no da interpretação espiritual da Escritura, ele foi muito estimado, até a morte, como demonstram as palavras de Karl Rahner e Günther Bornkamm: “... um carismático do pensamento teológico”; ou as de Rudolf Schnackenburg: “... um mestre da interpretação do Novo Testamento”. São juízos que não vêm de pessoas... estranhas. Além do mais, seus comentários científicos fazem parte das obras aconselhadas nas faculdades teológicas, o que não exclui, antes inclui eventuais críticas a eles; seus pequenos escritos eram muito requisitados em vários ambientes; várias comissões eclesiais pediram seu conselho, tanto que ele foi ativo em diversos níveis da mediação eclesial, desde o conselho paroquial de Sankt Michael, em Bonn, até a Comissão para a Fé e a Moral da Conferência Episcopal Alemã, da qual foi consultor. Com a proliferação das correntes teológicas depois do Concílio Vaticano II, não deve nos surpreender o fato de ter havido também juízos de outro tipo. Quanto à pergunta sobre o que meu pai pretendeu dizer com essa frase do Kurze Rechenschaft, seria preciso dar uma resposta muito mais articulada. Pessoalmente, creio que essa frase tenha brotado de um profundo sentimento de não ter morada neste mundo, de um modo de perceber a vida proveniente de fontes diferentes. Algumas vezes, a marginalização de meu pai foi fruto da inveja e do ciúme de seus colegas católicos. Um exemplo: quando ele estava para ser chamado para lecionar em Munique – se bem me lembro, na época em que a cátedra de Romano Guardini ficou vaga –, “alguém” trabalhou ativamente para impedir sua ida, recuperando uma antiga disposição que proibia que um leigo lecionasse numa cátedra católica. Constatar esse forte ciúme, quase “uma inveja do pão do próximo”, feriu profundamente meu pai, embora, com delicadeza, ele tenha preferido não falar a respeito. Ele havia aprendido a nunca depender de sucessos exteriores e a não buscar a realização de sua vida nas honrarias. Por seu engajamento na Igreja confessante (Bekennende Kirche), já tinha experimentado os obstáculos interpostos a seus projetos profissionais relacionados a Marburg, a Königsberg e até a Halle! 
Nesses trinta anos desde a sua morte, pelo que a senhora sabe, o interesse pela obra e pelo testemunho de seu pai cresceu ou diminuiu? Nos lugares em que houve esse interesse, como e de onde ele nasceu? A senhora sabe que 30Giorni presenteou a todos os seus leitores, em 2005, com uma reedição em italiano do opúsculo Sobre a ressurreição de Jesus Cristo (com prefácio do cardeal Ratzinger), e que em 2008 lançou novas traduções, em inglês, francês, espanhol e português, que suscitaram muito interesse? 
KUBINA-SCHLIER: Fico contente com a grande ressonância das traduções do livrinho Sobre a ressurreição de Jesus Cristo, publicadas como suplemento de sua revista. Nestes trinta anos desde a sua morte, o interesse pela obra de meu pai vem declinando cada vez mais; e há até muitas razões para isso: a exegese desenvolveu novos métodos, adquiriu novos conhecimentos, faz novas perguntas. A linguagem acurada, mas muitas vezes orientada num sentido biblicista e existencialista, hoje quase só é entendida por “iniciados”. Portanto, os escritos de meu pai que ainda suscitam interesse são sobretudo os espirituais. Mais raramente, seus grandes comentários são estudados também por especialistas que querem haurir do rico tesouro da “clarificação do contexto”. Os temas sobre os quais se focalizava o pensamento de meu pai, a Igreja, o ministério, o ministério sacerdotal, são inesgotáveis; mas, pelo que vejo, atualmente não são objeto de amplo debate ou de controvérsia, e as razões para isso não são necessariamente de mérito. Embora as interpretações dadas por meu pai possam ter sido unilaterais e ligadas à situação do momento – o que vale para qualquer obra científica –, o debate, no futuro, terá de se confrontar com sua análise textual.

http://www.30giorni.it/articoli_id_19868_l6.htm 
                                                                         

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Tradução: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. parte do artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.