Giorgio
Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua
geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de
Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e
norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University
em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa
no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou
aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia
(Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra,
influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre
filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política.
Pilatos e Jesus
A
profissão de fé cristã contém um único nome próprio (ao lado daqueles de Jesus
e da virgem Maria) que é totalmente estranho ao seu contexto teológico: o do
pagão Pôncio Pilatos. Figura inusitada na liturgia cristã, e segundo Nietzsche
“a única dos Evangelhos que merece respeito”, Pilatos é o autor de frases
memoráveis, como “O que é a verdade?”, “O que escrevi, escrevi” e o fastídico “Ecce
homo, eis o homem!”, pouco antes de entregar Jesus ao suplício.
Por
três meses o filósofo Giorgio Agamben se viu na urgência de interromper todas
suas atividades acadêmicas para mergulhar intensamente no enigma do julgamento
de Jesus Cristo, sob a figura misteriosa de Pilatos. É a figura de Pilatos,
lembra, que assegura o caráter histórico da paixão de cristo: trata-se de um
personagem de carne e osso – talvez o único verdadeiro dos Evangelhos. Mas,
Agamben prossegue, Pilatos é também algo menos e, ao mesmo tempo, muito mais
que isso: um homem do qual conhecemos as hesitações, o medo, o ressentimento, o
sarcasmo, as suscetibilidades, a hipocrisia...
Neste
breve e contundente ensaio Agamben mostra como, no encontro fugaz entre Pilatos
e Jesus estava em jogo um evento enorme e inédito, para além do drama da paixão
e da redenção. Neste encontro irreconciliável entre o “mundo dos fatos” e o
“mundo da verdade”, provoca Agamben, como nunca em outro lugar na história do
mundo, a eternidade cruzou a história em um ponto exemplar. O temporal foi
atravessado pelo eterno.
Desdobrando
esta recíproca perfuração entre os dois mundos – história e eternidade, sagrado
e profano, juízo e salvação – situada no âmago da religião cristã que a
modernidade secularizou, Agamben nos remete aos mais candentes impasses da
contemporaneidade. A pergunta chave que Pilatos e
Jesus desvenda é: por que o cruzamento entre o humano e o
divino, o histórico e o a-histórico, tem a forma de um processo? E que
processo é esse? O que é, afinal, um processo sem juízo? E o que é uma pena
(neste caso, a crucificação) que não deriva de um juízo formal?
O reino e a glória
Uma geneaolgia teológica da
economia e do governo [Homo Sacer, II, 2]
Coleção
Estado de Sítio
Com O
reino e a glória, a investigação sobre a genealogia do poder iniciada pelo
filósofo italiano Giorgio Agamben há treze anos com a obra Homo sacer chega
a uma encruzilhada decisiva. Em seus novos estudos, Agamben desvenda qual é a
relação que liga tão intimamente o poder à glória e a todo o aparato cerimonial
e litúrgico que o acompanha desde o início. Revela que, nos primeiros séculos
da história da Igreja, a doutrina da Trindade (o Pai, o Filho e o Espírito
Santo) é introduzida sob a forma de uma “economia” da vida divina, como um problema
de gestão e de governo da “casa” celeste e do mundo, aparecendo inesperadamente
na origem de muitas categorias fundamentais da política moderna, desde a teoria
democrática da divisão dos poderes até a doutrina estratégica dos “efeitos
colaterais”, desde a “mão invisível” do liberalismo smithiano até as ideias de
ordem e segurança.
As
investigações de O reino e a glória remetem a uma ciência dedicada à
história dos aspectos cerimoniais do poder e do direito, uma espécie de
arqueologia política da liturgia e do protocolo, que poderia ser chamada
provisoriamente de “arqueologia da glória”. Tais estudos situam-se no rastro das
pesquisas de Michael Foucault sobre a genealogia da governabilidade e alcançam
os primeiros séculos da teologia cristã, em que a doutrina trinitária serve
como forma mais clara de revelar o funcionamento e a articulação da máquina
governamental. Por meio de uma fascinante análise das aclamações litúrgicas e
dos símbolos cerimoniais do poder, do trono à coroa, da púrpura ao feixe de
varas carregado pelos litores (que se tornou símbolo do fascismo), Agamben
constrói uma genealogia inédita que mostra como elementos considerados resíduos
do passado continuam constituindo a base do poder ocidental.
É
nesse percurso intelectual que o filósofo italiano identifica um importante
paralelo entre as aclamações (gestos coletivos de louvor ou desaprovação) e a
chamada “opinião pública“, e vai além com a constatação de que a esfera da
glória não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se para novos
terrenos, como a mídia. “A democracia contemporânea é uma democracia
inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada
e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar (que o termo grego para
glória – doxa – seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é, desse ponto
de vista, mais que mera coincidência).” E, como reforça o autor, é a partir
disso que o problema hoje tão debatido da função política da mídia assume novos
significados e nova urgência.
Trecho do livro
"De
que maneira a liturgia 'faz' o poder? E se a máquina governamental é dupla
(Reino e Governo), que função a glória desempenha nela? Para os sociólogos e os
antropólogos sempre é possível recorrer à magia, à esfera que, confinando com a
racionalidade e precedendo-a imediatamente, permite explicar, em última
análise, como um resquício mágico aquilo que não conseguimos compreender a
respeito da sociedade em que vivemos. Não acreditamos em um poder mágico das
aclamações e da liturgia e estamos convencidos de que nem mesmo os teólogos e
os imperadores tenham alguma vez acreditado nisso. Se a glória é tão importante
na teologia, é porque permite manter juntas, na máquina governamental, trindade
imanente e trindade econômica, o ser de Deus e sua práxis, o Reino e o Governo.
Ao definir o Reino e a essência, ela determina também o sentido da economia e
do Governo. Permite, portanto, soldar a fratura entre teologia e economia da
qual a doutrina trinitária nunca conseguiu dar cabo completamente e que só na
figura deslumbrante da glória parece encontrar uma possível conciliação."
O mistério do mal
Bento XVI e o fim dos tempos
Neste
breve volume, ao interpretar a renúncia do papa Bento XVI, em chave, a um só
tempo, teológica e política, escatológica e histórica, Giorgio Agamben aborda a
questão da crise da sociedade e das instituições contemporâneas ressaltando
como ponto crucial a confusão entre legalidade e legitimidade. No bojo de suas
considerações, o filósofo italiano aponta ainda o papel da Igreja nos dias
atuais.
O
livro é composto por dois textos. O primeiro, “O mistério da Igreja”, é uma
reflexão sobre o significado do gesto de Bento XVI à luz de Ticônio, teólogo
donatista do século IV cuja doutrina teria influenciado fortemente santo
Agostinho em sua concepção das duas cidades, a dos homens e a de Deus.
O
segundo, “A história como mistério”, é a transcrição de uma conferência que o
autor proferiu na Suíça, em novembro de 2012, quando recebeu o título honoris
causa em teologia. Logo no início do volume, Agamben adverte o leitor da
pertinência de publicá-los lado a lado: ambos tratam da mesma questão, o
“significado político do tema messiânico do fim dos tempos, tanto hoje como há
vinte séculos”.
Essencial
para a compreensão dessa aproximação é o Apêndice, no qual o autor reproduz os
textos que são os pilares de sua interpretação: a “Declaração de Celestino V”
(1215-1296), o outro papa que entrou para a história por ter renunciado ao
cargo, a “Declaração de Bento XVI” – ambos em versão bilíngue, latim-português
–, a segunda e a sétima regra do Liber regularum de Ticônio, respectivamente,
“O corpo bipartido do Senhor” e “O diabo e seu corpo”, e o capítulo XIX do
Livro XX de A cidade de Deus, de santo Agostinho, dedicado ao comentário da
Segunda espístola aos tessalonicenses, do apóstolo Paulo.
O
ponto de partida para a leitura que Agamben faz da “grande recusa” de Bento XVI
é um artigo que o teólogo Ratzinger escreveu em 1956, aos 30 anos:
“Considerações sobre o conceito de Igreja de Ticônio no Liber regularum”.
Segundo o filósofo, a consciência de que o bem e o mal são intrínsecos à
própria Igreja e de que o mistério está na história, ainda que vá além desta,
evidenciada no texto do então futuro papa, permite dizer que seu gesto, muitos
anos mais tarde, foi um ato de coragem. Fazendo uso do poder espiritual, sua
decisão aponta a necessidade de que a Igreja assuma sua responsabilidade
histórica e messiânica e coloca em xeque a legitimidade dessa instituição que
“persegue com obstinação as razões da economia e do poder temporal”.
Distinguindo
dois princípios essenciais da maquinaria política, a legitimidade e legalidade,
Agamben mostra como a atitude de papa Bento XVI afeta nossa sociedade, não só
porque questiona a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade.
Na visão do filósofo, os poderes e as instituições hoje não estão
deslegitimados porque caíram na ilegalidade. Ao contrário, a ilegalidade é tão
difundida e generalizada que os poderes perderam toda a consciência de sua
legitimidade. Por isso, escreve o autor, é errado acreditar que se pode
enfrentar a crise das sociedades por meio de ação (certamente necessária) do
poder judiciário, “uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida
somente no plano do direito”. A tentativa moderna de equiparar legalidade e
legitimidade é – além de resultado do interminável processo de decadência em
que entraram as instituições democráticas – totalmente ineficiente, uma vez que
as instituições de uma sociedade se mantém vivas somente se estes princípios
continuem presentes e atuando sem se coincidirem.
Num
mundo dominado por opiniões ligeiras, este livro restitui o lugar do saber, do
conhecimento e da reflexão cuidadosa na sempre necessária crítica à sociedade
em que vivemos.
Editorial
Boitempo
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