1 A Terra
Comparada
as outras zonas do oriente próximo, como o Egito e Mesopotâmia, a Síria e a
Anatólia, que no passado foram sedes de celebradas civilizações de grandes formações
estatais, de metrópoles monumentais, a Palestina oferece um espetáculo
decididamente modesto. Para o período do Bronze recente, quando o Egito e a
Mesopotâmia podiam contar com alguns milhões de habitantes, a Palestina nem
sequer chegava aos 250 mil habitantes.[1]
Todavia,
esse país tão modesto em densidade humana desempenhou um papel de primeira
importância nas vicissitudes históricas de grande parte do mundo.
Essa
contradição se deve à extraordinária capacidade que tiveram os habitantes do
país de unir entre si paisagem e memórias e, portanto, de carregar sua terra de
valores simbólicos que depois numa sucessiva história de dispersão e
focalização, de afastamento e retorno contribuiu para difundir amplamente
também fora dele.
A
paisagem está fortemente antropotizada, até os mais diminutos tornam-se base de
memória e atestam a legitimação como unidade cortada em relação ao diferente
que o circunda.
à Um carvalho secular.
à Um poço.
à Uma caverna.
à Uma ruína antiga.
à Um túmulo de antepassados.
As
expressões correntes “Terra Prometida” e “Terra Santa” mostram como uma dada
região tenha podido tornar-se símbolo e valor sem nem sequer a necessidade de
dizer o nome da terra”, porque todos já sabem qual é, sem que haja margem de
equívoco.
2 As Cidades
Com o
termo, cidade, se pretende designar assentamentos cuja população é
diversificada por função e estratificada por renda, e que abrigam em seu
interior um setor “público”, seja ele templo, palácio ou ambos.[2]
Na
pobre Palestina as cidades do período do Bronze (a.C. 2800 – 1200) dificilmente
superam os 3 ou 4 mil habitantes, e a situação não muda muito no segundo
período do ferro (a.C. 900 – 600). Na cidade reside um “rei” em seu palácio (um
edifício de uns mil metros quadrados) com uma roda de dependentes diretos:
à Artesãos;
à Guardas;
à Servidores.
No
território agrícola, a população está agrupada em vilas, que vão de meia dúzia
de casas a umas cinquenta, no máximo.
A
população se dividia, grosso modo, em uns 20% de dependentes palatinos, 20% de
pastores e uns 60% de camponeses.
3 Assentamentos
Estepes
áridas e montanhas cobertas de bosque eram deixadas para frequentação sazonal
dos pastores de cabras e ovelhas, (com pastagens estivais nas colinas e
invernais na planície). A integração entre agricultura e pastorícia é muito
estreita e os próprios ritmos da transumância procuram respeitar os
“encostamentos” com o uso agrícola do território. Agricultores e pastores
habitam as mesmas vilas, unidades produtivas integradas, embora não totalmente
homogêneas.
4 O Domínio Egípcio
Por
cerca de três séculos (a.C. 1460 – 1170) a Palestina foi submetida ao domínio
direto dos egípcios; alguma influência política egípcia já precede esse período
e depois prosseguirá por muito tempo. O domínio egípcio teve um peso
determinante em vários aspectos da vida política da região.[3]
O
controle egípcio era em grande parte indireto e os “pequenos reis” locais
conservavam sua autonomia (mas não independência) como “servos” e tributários
do faraó.
Faraó
exigia um juramento de submissão breve quanto absoluto (“jamais nos rebelaremos
contra sua majestade”). E o juramento se concretizava em pagar um tributo
anual, em hospedar os mensageiros e as caravanas egípcias de passagem, em
conseguir as mercadorias solicitadas e também em ofertar princesas para o harém
real acompanhadas de rico dote.[4] Todos os anos um regimento egípcio
fazia o giro dos reinos palestinos para recolher tributos e outras mercadorias
especificamente exigidas.
O Faraó
era, com efeito, um deus distante, que os reis palestinos consideram bem inerte
e omisso e, portanto, de difícil compreensão. As expectativas dos reis locais
de obter de faraó um apoio contra seus inimigos, uma saída de suas
dificuldades, ficavam sem resposta a sem efeito.[5]
5 As Cidades
Palestinas
A
capital, cercada de muros, tinha como centro o palácio real, residência do rei
e de sua família, mas também sede de administração.[6]
A
dependência do reino em relação ao rei assume duas formas bem distintas, a
população está dividida em duas categorias:
à Homens do rei: São privados de meios
de produção próprios, trabalham para o rei e dele recebem como retribuição os
meios de sustento.
à População livre: que detém meios de
produção próprios e dá ao rei uma cota da própria renda de produção sob a forma
de taxa.
6 Organização da Cidade
Capital (em torno do palácio) = homens do
rei.
Vilas = homens livres.
A
população livre situa-se num nível médio, famílias que possuem um pouco de
terra e de gado que lhes permite viver e se reproduzir; mas podem também entrar
pelo caminho sem retorno do empréstimo a juros e de garantias pessoais, que
levam à escravidão por débitos.
7 Os Homens do Rei
Homens
do rei: Aristocracia militar, sacerdócio, escribas, administradores, artesões,
guardas e servidores escravos que perderam a terra.[7]
Todos
eles são juridicamente servos do rei, mas os modos e a medida da retribuição
são diversos e determinam situações de fato muito diferentes. Encarregados dos
carros, escribas, mercadores podem acumular substanciosas riquezas, sobretudo
sob a forma de terras a eles concedidas pelo rei.
A
transmissão da realeza sugue as normas em uso para a transmissão hereditária.
Não há distinção entre o primogênito e o segundo filho, a herança irá para quem
tiver “honrado” os pais, a quem, enfim, a tiver merecido. O Reino não pode ir
senão para um dos filhos do rei anterior. Os textos da época estão cheios de
disputas entre irmãos, de usurpações, até casos de fratricídio e de parricídio.
8 O Templo
Os
templos são lugares de rico entesouramento. Os sacerdotes são classificados
entre os “homens do rei”. Os rituais têm o rei como ator protagonista, servem
para o creditar junto a população como avalista da correta relação com o mundo
divino.
9 Vilas
A
maioria da população (uns 80%) vive nas vilas, com os próprios meios de produção:
terras de propriedade familiar e rebanhos de cabras e ovelhas.
A vila
é uma unidade estabelecida de modestas dimensões, mas também uma unidade
parental (clã) e uma unidade de decisão. Sobre a dimensão considerada “Vilas”,
grupos de casas de um mínimo de duas/três a um máximo de oitenta, com uma média
de 25 casas (e cem habitantes).
A
população está subdividida entre uma maioria de “casas” de camponeses “livres”
e de “pastores”, e uma minoria de servos do rei.[8]
A vila
é administrada por um conselho de “anciões” ou “pais”, ou seja, os chefes de
família mais respeitáveis e ali enraizados.
Vimos
que fazem parte das vilas grupos pastoris, para administrar a criação caprina
segundo a prática da transumância que leva a situações típicas que vêem o mesmo
grupo reunido ou disperso, conforme as estações.[9]
Pastores
e camponeses coexistem, pois, na época da concentração e devem ter em comum a
frequentação de lugares “sagrados”, normalmente conexos a antigos túmulos de
antepassados e a carvalhos seculares, como lugares em que a divindade pode se
manifestar e onde lhe são oferecidos sacrifícios sobre altares a céu aberto.
Essa tipologia é bem conhecida pelas histórias patriarcais: o carvalho de Mamre
(Gn. 13.18; 14.13; 18.1, 25. 9-10), com os túmulos de Abraão e Sara e depois de
Isaac (35.27) e de Jacó (50.13), o carvalho de More (12.6), em que Javé se
manifesta a Abraão.[10]
10 Os Nômades
“Externos”
Os
textos do Bronze recente mostram também autênticos nômades “externos”,
definidos com termos não geográficos, nas coletivas, dirse-ia tribais. Sua
principal área de atividades são as estepes do Sul e do Leste, às margens do
deserto; mas são encontrados também nos altiplanos centrais. A presença deles é
vista como perigosa para quem deve atravessar aqueles territórios: o palácio
não tem autoridade sobre essas tribos externas, salvo assalariar alguns
efetivos deles como guia ou como escolta.
11
As Tensões Sócio-Econômicas
O
Bronze recente é um período de fortes tensões sócio-econômicas, provocadas,
sobretudo pelo processo de endividamento da população camponesa e pela atitude
muito dura e proposital por parte do rei. As dificuldades econômicas induzem os
camponeses “livres” a conseguir trigo em troca de penhores materiais,
especialmente terras e depois de garantias pessoais: mulheres e filhos se
tornam servos do credor, numa servidão teoricamente temporária, salvo quando se
torna permanente na impossibilidade de pagamente do débito. O último estágio,
quando o devedor deve dar-se a si mesmo como escravo, fecha o ciclo pela impossibilidade
de recuperação: o desesperado prefere por isso, em muitos casos, pôr-se em
fuga.
Aos
camponeses endividados não resta senão a fuga, para os espaços de difícil
controle que são as montanhas cobertas de bosques e as estepes pré-desérticas.
Aqui os grupos de refugiados podem se organizar e se unir de algum modo com os
clãs pastoris. Esses grupos de gente afastados do próprio contexto social de
origem e refugiados em outras partes são definidos como habiru; o termo tem uma
conexão etimológica e semântica com os mais antigos atestações do termo
“hebreus” (ibri), antes que eles assumisse valores étnicos . O termo habiru,
tem uma conotação técnica de “foragido”, no sentido de “fora da lei”, “rebelado
contra a autoridade legítima”.[11]
Os
habiru em sua maioria são pessoas de baixo nível social, marginalizados mais
por motivos econômicos que políticos, e que encontram refúgio em ambientes
marginais, ou muitas vezes se solidarizam com os nômades ou para servir como
tropas mercenárias ou para se entregar ao banditismo.[12] Os mais alarmados dos reis cananeus
temem que os próprios camponeses endividados, mas que ainda permaneciam no
lugar, possam se solidarizar com os habiru, e que dessa união brotem sangrentas
revoltas.
“Se os camponeses desertam, os habiru
tomarão a cidade”.
A
atitude dura dos reis cananeus em assunto econômico produz, portanto, um
notável descontentamento da população de base agropastoril em relação ao
palácio.
12 Crise e Local:
Etnogenia de Israel.
Principais
teorias que se sucederam e se confrontaram sobre a origem de Israel:
1 – A
teoria da conquista “Militar”, compacta e destrutiva, de direta inspiração
bíblica, é ainda afirmada em alguns ambientes tradicionalistas.
2 –
Prevalece hoje a idéia de uma ocupação progressiva, nas duas variantes (mais
complementares do que exclusivas entre si) da sedentarização de grupos pastoris
já presentes na área e da infiltração do adjacente pré-deserto.
3 –
Teoria (chamada “sociológica”) da revolta camponesa, que privilegia totalmente
o processo por linhas internas sem contribuições externas, essa teoria é
atualmente mal vista, por motivos às vezes declaradamente políticos.
David Rubens de Souza
[1]
LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História
Antiga de Israel. São Paulo: Paulus,
2008. p. 30.
[2]
Ibidem, p. 32.
[3]
Ibidem, p. 36.
[4]
Ibidem, p. 39.
[5]
Ibidem, p. 42.
[6]
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução a
Bíblia: Formação do Povo de Israel. São Paulo: Paulus, 2002. p. 19. (O
livro de Bohn Gass é muito bom, explicação detalhada sobre as Cidades-Estado e na página 20 tem um
mapa detalhado que facilita a compreensão das cidades).
[7]
LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História
Antiga de Israel. São Paulo: Paulus,
2008. p. 43.
[8]
Ibidem, p. 48.
[9]
ZENGER, Erich. O Deus da Bíblia: Estudo
Sobre os Inícios da Fé em Deus no Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1989.
p. 34. (Boa explicação sobre o modo de vida dos beduínos.)
[10]
LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 50.
[11]
Ibidem, p. 54.
[12]
VV. AA. Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. São Paulo: Paulus, 1995. p. 35.
(Excelente explicação sobre os habirus).
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