quarta-feira, 28 de outubro de 2015

280 - História de Israel: O Surgimento do Povo de Deus No Antigo Testamento, David Rubens



1  A Terra
Comparada as outras zonas do oriente próximo, como o Egito e Mesopotâmia, a Síria e a Anatólia, que no passado foram sedes de celebradas civilizações de grandes formações estatais, de metrópoles monumentais, a Palestina oferece um espetáculo decididamente modesto. Para o período do Bronze recente, quando o Egito e a Mesopotâmia podiam contar com alguns milhões de habitantes, a Palestina nem sequer chegava aos 250 mil habitantes.[1]
Todavia, esse país tão modesto em densidade humana desempenhou um papel de primeira importância nas vicissitudes históricas de grande parte do mundo.
Essa contradição se deve à extraordinária capacidade que tiveram os habitantes do país de unir entre si paisagem e memórias e, portanto, de carregar sua terra de valores simbólicos que depois numa sucessiva história de dispersão e focalização, de afastamento e retorno contribuiu para difundir amplamente também fora dele.
A paisagem está fortemente antropotizada, até os mais diminutos tornam-se base de memória e atestam a legitimação como unidade cortada em relação ao diferente que o circunda.
à     Um carvalho secular.
à     Um poço.
à     Uma caverna.
à     Uma ruína antiga.
à     Um túmulo de antepassados.
As expressões correntes “Terra Prometida” e “Terra Santa” mostram como uma dada região tenha podido tornar-se símbolo e valor sem nem sequer a necessidade de dizer o nome da terra”, porque todos já sabem qual é, sem que haja margem de equívoco.

2  As Cidades
Com o termo, cidade, se pretende designar assentamentos cuja população é diversificada por função e estratificada por renda, e que abrigam em seu interior um setor “público”, seja ele templo, palácio ou ambos.[2]
Na pobre Palestina as cidades do período do Bronze (a.C. 2800 – 1200) dificilmente superam os 3 ou 4 mil habitantes, e a situação não muda muito no segundo período do ferro (a.C. 900 – 600). Na cidade reside um “rei” em seu palácio (um edifício de uns mil metros quadrados) com uma roda de dependentes diretos:
à     Artesãos;
à     Guardas;
à     Servidores.
No território agrícola, a população está agrupada em vilas, que vão de meia dúzia de casas a umas cinquenta, no máximo.
A população se dividia, grosso modo, em uns 20% de dependentes palatinos, 20% de pastores e uns 60% de camponeses.

3  Assentamentos
Estepes áridas e montanhas cobertas de bosque eram deixadas para frequentação sazonal dos pastores de cabras e ovelhas, (com pastagens estivais nas colinas e invernais na planície). A integração entre agricultura e pastorícia é muito estreita e os próprios ritmos da transumância procuram respeitar os “encostamentos” com o uso agrícola do território. Agricultores e pastores habitam as mesmas vilas, unidades produtivas integradas, embora não totalmente homogêneas.

4  O Domínio Egípcio
Por cerca de três séculos (a.C. 1460 – 1170) a Palestina foi submetida ao domínio direto dos egípcios; alguma influência política egípcia já precede esse período e depois prosseguirá por muito tempo. O domínio egípcio teve um peso determinante em vários aspectos da vida política da região.[3]
O controle egípcio era em grande parte indireto e os “pequenos reis” locais conservavam sua autonomia (mas não independência) como “servos” e tributários do faraó.
Faraó exigia um juramento de submissão breve quanto absoluto (“jamais nos rebelaremos contra sua majestade”). E o juramento se concretizava em pagar um tributo anual, em hospedar os mensageiros e as caravanas egípcias de passagem, em conseguir as mercadorias solicitadas e também em ofertar princesas para o harém real acompanhadas de rico dote.[4] Todos os anos um regimento egípcio fazia o giro dos reinos palestinos para recolher tributos e outras mercadorias especificamente exigidas.
O Faraó era, com efeito, um deus distante, que os reis palestinos consideram bem inerte e omisso e, portanto, de difícil compreensão. As expectativas dos reis locais de obter de faraó um apoio contra seus inimigos, uma saída de suas dificuldades, ficavam sem resposta a sem efeito.[5]

5  As Cidades Palestinas
A capital, cercada de muros, tinha como centro o palácio real, residência do rei e de sua família, mas também sede de administração.[6]
A dependência do reino em relação ao rei assume duas formas bem distintas, a população está dividida em duas categorias:
à     Homens do rei: São privados de meios de produção próprios, trabalham para o rei e dele recebem como retribuição os meios de sustento.
à     População livre: que detém meios de produção próprios e dá ao rei uma cota da própria renda de produção sob a forma de taxa.

6  Organização da Cidade
Capital (em torno do palácio) = homens do rei.
Vilas = homens livres.
A população livre situa-se num nível médio, famílias que possuem um pouco de terra e de gado que lhes permite viver e se reproduzir; mas podem também entrar pelo caminho sem retorno do empréstimo a juros e de garantias pessoais, que levam à escravidão por débitos.

7  Os Homens do Rei
Homens do rei: Aristocracia militar, sacerdócio, escribas, administradores, artesões, guardas e servidores escravos que perderam a terra.[7]
Todos eles são juridicamente servos do rei, mas os modos e a medida da retribuição são diversos e determinam situações de fato muito diferentes. Encarregados dos carros, escribas, mercadores podem acumular substanciosas riquezas, sobretudo sob a forma de terras a eles concedidas pelo rei.
A transmissão da realeza sugue as normas em uso para a transmissão hereditária. Não há distinção entre o primogênito e o segundo filho, a herança irá para quem tiver “honrado” os pais, a quem, enfim, a tiver merecido. O Reino não pode ir senão para um dos filhos do rei anterior. Os textos da época estão cheios de disputas entre irmãos, de usurpações, até casos de fratricídio e de parricídio.

8  O Templo
Os templos são lugares de rico entesouramento. Os sacerdotes são classificados entre os “homens do rei”. Os rituais têm o rei como ator protagonista, servem para o creditar junto a população como avalista da correta relação com o mundo divino.

9  Vilas
A maioria da população (uns 80%) vive nas vilas, com os próprios meios de produção: terras de propriedade familiar e rebanhos de cabras e ovelhas.
A vila é uma unidade estabelecida de modestas dimensões, mas também uma unidade parental (clã) e uma unidade de decisão. Sobre a dimensão considerada “Vilas”, grupos de casas de um mínimo de duas/três a um máximo de oitenta, com uma média de 25 casas (e cem habitantes).
A população está subdividida entre uma maioria de “casas” de camponeses “livres” e de “pastores”, e uma minoria de servos do rei.[8]
A vila é administrada por um conselho de “anciões” ou “pais”, ou seja, os chefes de família mais respeitáveis e ali enraizados.
Vimos que fazem parte das vilas grupos pastoris, para administrar a criação caprina segundo a prática da transumância que leva a situações típicas que vêem o mesmo grupo reunido ou disperso, conforme as estações.[9]
Pastores e camponeses coexistem, pois, na época da concentração e devem ter em comum a frequentação de lugares “sagrados”, normalmente conexos a antigos túmulos de antepassados e a carvalhos seculares, como lugares em que a divindade pode se manifestar e onde lhe são oferecidos sacrifícios sobre altares a céu aberto. Essa tipologia é bem conhecida pelas histórias patriarcais: o carvalho de Mamre (Gn. 13.18; 14.13; 18.1, 25. 9-10), com os túmulos de Abraão e Sara e depois de Isaac (35.27) e de Jacó (50.13), o carvalho de More (12.6), em que Javé se manifesta a Abraão.[10]

10  Os Nômades “Externos”
Os textos do Bronze recente mostram também autênticos nômades “externos”, definidos com termos não geográficos, nas coletivas, dirse-ia tribais. Sua principal área de atividades são as estepes do Sul e do Leste, às margens do deserto; mas são encontrados também nos altiplanos centrais. A presença deles é vista como perigosa para quem deve atravessar aqueles territórios: o palácio não tem autoridade sobre essas tribos externas, salvo assalariar alguns efetivos deles como guia ou como escolta.

11  As Tensões Sócio-Econômicas
O Bronze recente é um período de fortes tensões sócio-econômicas, provocadas, sobretudo pelo processo de endividamento da população camponesa e pela atitude muito dura e proposital por parte do rei. As dificuldades econômicas induzem os camponeses “livres” a conseguir trigo em troca de penhores materiais, especialmente terras e depois de garantias pessoais: mulheres e filhos se tornam servos do credor, numa servidão teoricamente temporária, salvo quando se torna permanente na impossibilidade de pagamente do débito. O último estágio, quando o devedor deve dar-se a si mesmo como escravo, fecha o ciclo pela impossibilidade de recuperação: o desesperado prefere por isso, em muitos casos, pôr-se em fuga.
Aos camponeses endividados não resta senão a fuga, para os espaços de difícil controle que são as montanhas cobertas de bosques e as estepes pré-desérticas. Aqui os grupos de refugiados podem se organizar e se unir de algum modo com os clãs pastoris. Esses grupos de gente afastados do próprio contexto social de origem e refugiados em outras partes são definidos como habiru; o termo tem uma conexão etimológica e semântica com os mais antigos atestações do termo “hebreus” (ibri), antes que eles assumisse valores étnicos . O termo habiru, tem uma conotação técnica de “foragido”, no sentido de “fora da lei”, “rebelado contra a autoridade legítima”.[11]
Os habiru em sua maioria são pessoas de baixo nível social, marginalizados mais por motivos econômicos que políticos, e que encontram refúgio em ambientes marginais, ou muitas vezes se solidarizam com os nômades ou para servir como tropas mercenárias ou para se entregar ao banditismo.[12] Os mais alarmados dos reis cananeus temem que os próprios camponeses endividados, mas que ainda permaneciam no lugar, possam se solidarizar com os habiru, e que dessa união brotem sangrentas revoltas.      

“Se os camponeses desertam, os habiru tomarão a cidade”.

A atitude dura dos reis cananeus em assunto econômico produz, portanto, um notável descontentamento da população de base agropastoril em relação ao palácio.

12  Crise e Local: Etnogenia de Israel.
Principais teorias que se sucederam e se confrontaram sobre a origem de Israel:
1 – A teoria da conquista “Militar”, compacta e destrutiva, de direta inspiração bíblica, é ainda afirmada em alguns ambientes tradicionalistas.
2 – Prevalece hoje a idéia de uma ocupação progressiva, nas duas variantes (mais complementares do que exclusivas entre si) da sedentarização de grupos pastoris já presentes na área e da infiltração do adjacente pré-deserto.
3 – Teoria (chamada “sociológica”) da revolta camponesa, que privilegia totalmente o processo por linhas internas sem contribuições externas, essa teoria é atualmente mal vista, por motivos às vezes declaradamente políticos.


David Rubens de Souza



[1] LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 30.
[2] Ibidem, p. 32.
[3] Ibidem, p. 36.
[4] Ibidem, p. 39.
[5] Ibidem, p. 42.
[6] GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução a Bíblia: Formação do Povo de Israel. São Paulo: Paulus, 2002. p. 19. (O livro de Bohn Gass é muito bom, explicação detalhada sobre as Cidades-Estado e na página 20 tem um mapa detalhado que facilita a compreensão das cidades).
[7] LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 43.
[8] Ibidem, p. 48.
[9] ZENGER, Erich. O Deus da Bíblia: Estudo Sobre os Inícios da Fé em Deus no Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 34. (Boa explicação sobre o modo de vida dos beduínos.)
[10] LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: História Antiga de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 50.
[11] Ibidem, p. 54.
[12] VV. AA. Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. São Paulo: Paulus, 1995. p. 35. (Excelente explicação sobre os habirus).

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Tradução: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. parte do artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.