A teologia é por
definição inteligência da fé. A sua função primária é obter e conservar a
inteligibilidade da Revelação. Para cumprir essa função, serve-se precipuamente
da filosofia.
Quando examinamos o
pensamento de Bultmann sobre a história e a hermenêutica, percebe-se que para
ele o teólogo não pode prescindir da filosofia. Com efeito, tanto o historiador
como o exegeta devem ter uma pré-compreensão do seu objeto. Ora, toda
pré-compreensão implica uma filosofia.
A dificuldade de que
nessa concepção a exegese, a história e, consequentemente, também a teologia
podem cair sob o controle da filosofia, Bultmann responde que na realidade
assim é;
“mas é preciso perguntar-se de que modo isso deve ser
entendido. Com efeito, é ilusório pretender que uma exegese possa ser
independente das representações mundanas. Todo intérprete, consciente ou
inconscientemente, depende das representações que herdou de uma tradição; e
toda tradição se subordina a uma filosofia, qualquer que seja. Assim, por
exemplo, a exegese do século XIX era, quando muito, tributária da filosofia
idealista, de suas idéias e de sua compreensão da existência humana. Muitos
intérpretes são ainda hoje influenciados pelas representações idealistas. Disso
deriva que nunca se deveria realizar cegamente um estudo histórico e exegético,
sem levar em conta as concepções que o orientam. Isso significa, em outras
palavras, colocar a questão da filosofia ‘justa’”.[1]
Bultmann passa então a
demonstração que hoje, a filosofia “justa”, aquela que assegura uma
pré-compreensão apta a entender o fenômeno histórico do cristianismo e os
textos bíblicos, é o existencialismo.
“Aqui, devemos ver bem claro que nunca haverá uma filosofia
justa no sentido de um sistema filosófico absolutamente perfeito, capaz de
responder a todas as questões e resolver todos os enigmas da existência humana.
A questão reside apenas em saber qual é a filosofia que hoje oferece as
perspectivas e os conceitos mais apropriados para a compreensão da existência
humana. Parece-me que, chegados a esse ponto, devemos aprender algo da
filosofia da existência, porque a existência é o objeto primeiro sobre o qual
essa escola filosófica volta sua atenção. A filosofia da existência pode
oferecer representações apropriadas para a interpretação da Bíblia, porque esta
se interessa pela compreensão da existência”.[2]
Por conseguinte, a essência da mensagem
bíblica consiste na revelação de uma nova compreensão da existência, entendida
como submissão total e obediência a Deus. Mas não é possível compreender a
mensagem bíblica sobre a existência se não se sabe nem mesmo o que significa
existir. Numa palavra, é necessária uma pré-compreensão da existência.
Existencialismo
como pré-compreensão da existência.
Por que a
pré-compreensão a ser adotada na interpretação da Escritura deve ser exatamente
a do existencialismo? Por que não pode ser a do idealismo ou do romantismo?
Segundo Bultmann, a
pré-compreensão idealista e a romântica não estão aptas porque não se limitam a
fornecer esquemas gerais de compreensão, mas já os preenchem com seu conteúdo,
razão pela qual terminam por controlar totalmente a interpretação da Escritura.
Tanto o idealismo como o romantismo têm um conceito tal do homem que tornam
impossível a livre decisão de viver em total obediência a Deus. Com efeito, o
idealismo identifica o homem com Deus e nossa identificação não sobra nenhum
lugar para a decisão humana; já o romantismo, centrando tudo no homem, não
deixa mais espaço para uma intervenção extraordinária de Deus. O
existencialismo, ao contrário, fornece ao teólogo só um esquema geral da
autêntica existência, sem predeterminar sua atuação concreta em cada instante
particular.
Para provar que o
existencialismo não oferece um modelo de existência concreta, Bultmann recorre
ao exemplo da análise existencial do amor. “Seria um erro”, afirma ele,
“crer que a análise existencial do amor possa permitir-me
compreender a maneira como devo amar neste lugar e neste momento. Essa análise
limita-se a explicar-me que não posso compreender o amor a não ser amando.
Nenhuma análise pode substituir-se ao meu dever de compreender o meu amor como
um encontro que se realiza em minha existência pessoal”.[3]
E o mesmo em relação à
existência:
“A análise filosófica não tem a pretensão de mostrar-me minha
auto-compreensão pessoal. A análise puramente formal da existência não
considera a relação entre o homem e Deus, uma vez que não leva em conta os
acontecimentos concretos da vida pessoal, os encontros concretos que formam a
existência pessoal.
Se é verdade que a revelação de Deus não se cumpre senão nos
acontecimentos da vida, neste lugar e neste momento, e que a análise da
existência limita-se à vida temporal do homem colhida na sucessão de lugar e
tempo, então essa análise revela um domínio que só a fé está em condições de
compreender, na medida em que constitui o domínio da relação entre o homem e
Deus... A filosofia da existência não leva em consideração a relação entre o
homem e Deus: esse fato comporta o reconhecimento de que eu não posso falar de
Deus como do meu Deus até que eu olhe para dentro de mim mesmo. A minha relação
pessoal com Deus só pode ser estabelecida por Deus, do Deus que opera e que me
encontra em sua palavra”.[4]
Noutro trecho, Bultmann
afirma que a diversidade entre filosofia da existência e Escritura não deve ser
colocada no plano do conhecimento, mas sim no plano da ação. Com efeito,
assegura o teólogo de Marburg, no plano do conhecimento a filosofia não tem
nada a apreender do Novo Testamento, porque já sabe aquilo que significa
“existência histórica”. Já no plano da ação a Escritura afasta-se da filosofia.
Esta considera que o homem é capaz de libertar-se sozinho da escravidão do
homem velho e da morte, ao passo que a Escritura ensina exatamente o contrário.
Ela faz ver que o homem, mesmo sabendo aquilo que deve fazer, é incapaz de
fazê-lo. Para ser libertado, o homem tem necessidade de uma intervenção
especial, de um “ato” de Deus. Por isso, a boa nova do Novo Testamento não é
uma doutrina sobre o autêntico ser do homem, mas “o anúncio de um ato de
redenção realizado por Cristo”.
Para compreender
corretamente o pensamento de Bultmann sobre essa questão, é preciso notar que
ele considera que a filosofia não está em condições de descobrir o pecado. Por
isso afirma que a filosofia pode considerar como transponível o abismo que
separa a vida inautêntica da vida autêntica.
“A auto-afirmação do homem cega-o para o fato do pecado e essa
é a prova mais clara de que ele é um ser decaído. Portanto, de nada serve
dizer-lhe que é um pecador. Responderá que se trata de uma mitologia. Mas isso
não quer dizer que está com a razão. O pecado deixa de ser mitologia quando o
amor de Deus encontra o homem, como uma força que o abraça e sustenta também em
sua condição de pecado e soberba. O amor de Deus trata o homem como se fosse
diferente daquilo que é. Assim fazendo, liberta-o da condição em que se
encontra”.[5]
Segundo Bultmann, o
existencialismo presta-se admiravelmente, à interpretação da Escritura, não só
por sua pré-compreensão da existência humana em geral, mas também por sua
concepção do homem em suas características específicas. Segundo o
existencialismo, o homem distingue-se das outras criaturas porque, diversamente
delas, não é algo finito, verificável, “tangível”, mas sim uma mina de
possibilidades, as quais fazem de sua vida uma vida de “decisões”. E ele se
perde quando, ao invés de manter-se continuamente alerta, vigilante em relação às
suas escolhas, deixa-se arrastar pelo hábito e se aprisionar pelo passado, pelo
homem velho, por aquilo que já é, ao invés de tender para aquilo que pode e
deve ser. Contudo, ao contrário, salva-se quando vive em contínua tensão para
as suas possibilidades. A existência humana é uma luta perene entre vida
inautêntica e vida autêntica. A plenitude e a completeza da vida só podem ser
alcançadas quando se aceita e vive para a extrema possibilidade, a morte.
Segundo Bultmann,
partindo dessa concepção do homem, o kerygma cristão é plenamente inteligível.
Numa palavra, o esquema do kerygma enquadra-se perfeitamente com o esquema do
existencialismo. Também o cristianismo fala de homem velho e de homem novo, de
queda e redenção, de possibilidades e decisões. Por essa razão, deve-se
considerar o existencialismo a filosofia “justa”, que “oferece as
representações apropriadas para a interpretação da Bíblia”.
Há ainda uma última
razão pela qual ele vê no existencialismo um instrumento indispensável para a
teologia contemporânea: só o existencialismo oferece categorias adequadas para
operar a demitologização da mensagem cristã que ele considera ser hoje a tarefa
máxima da teologia.
David Rubens de Souza
Pós-Graduado em Ensino de Filosofia,
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
Referência:
BULTMANN,
Rudolf. Jesus. São Paulo: Teológica,
2005.
_________________.
Teologia do Novo Testamento. São
Paulo: Teológica, 2004.
_________________.
Desmitologização: Coletânea de
Ensaios. São Leopoldo: Sinodal, 1999.
_________________.
Jesus Cristo e Mitologia. São Paulo:
Fonte Editorial, 2003.
_________________.
Crer e Compreender. Artigos
Selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
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