quarta-feira, 7 de outubro de 2015

268 - Hermenêutica Bíblica: Rudolf Bultmann e a filosofia “justa”, para uma pré-compreensão do fenômeno histórico do cristianismo


A teologia é por definição inteligência da fé. A sua função primária é obter e conservar a inteligibilidade da Revelação. Para cumprir essa função, serve-se precipuamente da filosofia.
Quando examinamos o pensamento de Bultmann sobre a história e a hermenêutica, percebe-se que para ele o teólogo não pode prescindir da filosofia. Com efeito, tanto o historiador como o exegeta devem ter uma pré-compreensão do seu objeto. Ora, toda pré-compreensão implica uma filosofia.
A dificuldade de que nessa concepção a exegese, a história e, consequentemente, também a teologia podem cair sob o controle da filosofia, Bultmann responde que na realidade assim é;

“mas é preciso perguntar-se de que modo isso deve ser entendido. Com efeito, é ilusório pretender que uma exegese possa ser independente das representações mundanas. Todo intérprete, consciente ou inconscientemente, depende das representações que herdou de uma tradição; e toda tradição se subordina a uma filosofia, qualquer que seja. Assim, por exemplo, a exegese do século XIX era, quando muito, tributária da filosofia idealista, de suas idéias e de sua compreensão da existência humana. Muitos intérpretes são ainda hoje influenciados pelas representações idealistas. Disso deriva que nunca se deveria realizar cegamente um estudo histórico e exegético, sem levar em conta as concepções que o orientam. Isso significa, em outras palavras, colocar a questão da filosofia ‘justa’”.[1]

Bultmann passa então a demonstração que hoje, a filosofia “justa”, aquela que assegura uma pré-compreensão apta a entender o fenômeno histórico do cristianismo e os textos bíblicos, é o existencialismo.

“Aqui, devemos ver bem claro que nunca haverá uma filosofia justa no sentido de um sistema filosófico absolutamente perfeito, capaz de responder a todas as questões e resolver todos os enigmas da existência humana. A questão reside apenas em saber qual é a filosofia que hoje oferece as perspectivas e os conceitos mais apropriados para a compreensão da existência humana. Parece-me que, chegados a esse ponto, devemos aprender algo da filosofia da existência, porque a existência é o objeto primeiro sobre o qual essa escola filosófica volta sua atenção. A filosofia da existência pode oferecer representações apropriadas para a interpretação da Bíblia, porque esta se interessa pela compreensão da existência”.[2]

 Por conseguinte, a essência da mensagem bíblica consiste na revelação de uma nova compreensão da existência, entendida como submissão total e obediência a Deus. Mas não é possível compreender a mensagem bíblica sobre a existência se não se sabe nem mesmo o que significa existir. Numa palavra, é necessária uma pré-compreensão da existência.

Existencialismo como pré-compreensão da existência.
Por que a pré-compreensão a ser adotada na interpretação da Escritura deve ser exatamente a do existencialismo? Por que não pode ser a do idealismo ou do romantismo?
Segundo Bultmann, a pré-compreensão idealista e a romântica não estão aptas porque não se limitam a fornecer esquemas gerais de compreensão, mas já os preenchem com seu conteúdo, razão pela qual terminam por controlar totalmente a interpretação da Escritura. Tanto o idealismo como o romantismo têm um conceito tal do homem que tornam impossível a livre decisão de viver em total obediência a Deus. Com efeito, o idealismo identifica o homem com Deus e nossa identificação não sobra nenhum lugar para a decisão humana; já o romantismo, centrando tudo no homem, não deixa mais espaço para uma intervenção extraordinária de Deus. O existencialismo, ao contrário, fornece ao teólogo só um esquema geral da autêntica existência, sem predeterminar sua atuação concreta em cada instante particular.
Para provar que o existencialismo não oferece um modelo de existência concreta, Bultmann recorre ao exemplo da análise existencial do amor. “Seria um erro”, afirma ele,

“crer que a análise existencial do amor possa permitir-me compreender a maneira como devo amar neste lugar e neste momento. Essa análise limita-se a explicar-me que não posso compreender o amor a não ser amando. Nenhuma análise pode substituir-se ao meu dever de compreender o meu amor como um encontro que se realiza em minha existência pessoal”.[3]

E o mesmo em relação à existência:

“A análise filosófica não tem a pretensão de mostrar-me minha auto-compreensão pessoal. A análise puramente formal da existência não considera a relação entre o homem e Deus, uma vez que não leva em conta os acontecimentos concretos da vida pessoal, os encontros concretos que formam a existência pessoal.
Se é verdade que a revelação de Deus não se cumpre senão nos acontecimentos da vida, neste lugar e neste momento, e que a análise da existência limita-se à vida temporal do homem colhida na sucessão de lugar e tempo, então essa análise revela um domínio que só a fé está em condições de compreender, na medida em que constitui o domínio da relação entre o homem e Deus... A filosofia da existência não leva em consideração a relação entre o homem e Deus: esse fato comporta o reconhecimento de que eu não posso falar de Deus como do meu Deus até que eu olhe para dentro de mim mesmo. A minha relação pessoal com Deus só pode ser estabelecida por Deus, do Deus que opera e que me encontra em sua palavra”.[4]

Noutro trecho, Bultmann afirma que a diversidade entre filosofia da existência e Escritura não deve ser colocada no plano do conhecimento, mas sim no plano da ação. Com efeito, assegura o teólogo de Marburg, no plano do conhecimento a filosofia não tem nada a apreender do Novo Testamento, porque já sabe aquilo que significa “existência histórica”. Já no plano da ação a Escritura afasta-se da filosofia. Esta considera que o homem é capaz de libertar-se sozinho da escravidão do homem velho e da morte, ao passo que a Escritura ensina exatamente o contrário. Ela faz ver que o homem, mesmo sabendo aquilo que deve fazer, é incapaz de fazê-lo. Para ser libertado, o homem tem necessidade de uma intervenção especial, de um “ato” de Deus. Por isso, a boa nova do Novo Testamento não é uma doutrina sobre o autêntico ser do homem, mas “o anúncio de um ato de redenção realizado por Cristo”.

Para compreender corretamente o pensamento de Bultmann sobre essa questão, é preciso notar que ele considera que a filosofia não está em condições de descobrir o pecado. Por isso afirma que a filosofia pode considerar como transponível o abismo que separa a vida inautêntica da vida autêntica.

“A auto-afirmação do homem cega-o para o fato do pecado e essa é a prova mais clara de que ele é um ser decaído. Portanto, de nada serve dizer-lhe que é um pecador. Responderá que se trata de uma mitologia. Mas isso não quer dizer que está com a razão. O pecado deixa de ser mitologia quando o amor de Deus encontra o homem, como uma força que o abraça e sustenta também em sua condição de pecado e soberba. O amor de Deus trata o homem como se fosse diferente daquilo que é. Assim fazendo, liberta-o da condição em que se encontra”.[5]

Segundo Bultmann, o existencialismo presta-se admiravelmente, à interpretação da Escritura, não só por sua pré-compreensão da existência humana em geral, mas também por sua concepção do homem em suas características específicas. Segundo o existencialismo, o homem distingue-se das outras criaturas porque, diversamente delas, não é algo finito, verificável, “tangível”, mas sim uma mina de possibilidades, as quais fazem de sua vida uma vida de “decisões”. E ele se perde quando, ao invés de manter-se continuamente alerta, vigilante em relação às suas escolhas, deixa-se arrastar pelo hábito e se aprisionar pelo passado, pelo homem velho, por aquilo que já é, ao invés de tender para aquilo que pode e deve ser. Contudo, ao contrário, salva-se quando vive em contínua tensão para as suas possibilidades. A existência humana é uma luta perene entre vida inautêntica e vida autêntica. A plenitude e a completeza da vida só podem ser alcançadas quando se aceita e vive para a extrema possibilidade, a morte.
Segundo Bultmann, partindo dessa concepção do homem, o kerygma cristão é plenamente inteligível. Numa palavra, o esquema do kerygma enquadra-se perfeitamente com o esquema do existencialismo. Também o cristianismo fala de homem velho e de homem novo, de queda e redenção, de possibilidades e decisões. Por essa razão, deve-se considerar o existencialismo a filosofia “justa”, que “oferece as representações apropriadas para a interpretação da Bíblia”.
Há ainda uma última razão pela qual ele vê no existencialismo um instrumento indispensável para a teologia contemporânea: só o existencialismo oferece categorias adequadas para operar a demitologização da mensagem cristã que ele considera ser hoje a tarefa máxima da teologia.

David Rubens de Souza
Pós-Graduado em Ensino de Filosofia,
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.



Referência:

BULTMANN, Rudolf. Jesus. São Paulo: Teológica, 2005.
_________________. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004.
_________________. Desmitologização: Coletânea de Ensaios. São Leopoldo: Sinodal, 1999.
_________________. Jesus Cristo e Mitologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2003.
_________________. Crer e Compreender. Artigos Selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 2001.


  




[1] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e mitologia, p. 35
[2] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e mitologia, p. 36.
[3] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e mitologia, p. 38.
[4] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e mitologia, p. 46.
[5] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e mitologia, p. 52.

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Tradução: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. parte do artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.