Certamente Bultmann
(1884-1976) foi o personagem mais influente no estudo do NT no séc. XX,
combinando uma imensa erudição e pesquisa com um desejo profundamente pastoral
de pregar uma mensagem significativa e relevante a seus contemporâneos num
mundo onde não é mais fácil ter fé. Marburgo, o cenário da carreira docente de
Bultmann, tornou- se uma Tübingen moderna na influência que exerceu sobre a
teologia protestante. Em termos de mero volume, o trabalho de Bultmann se
estendeu por um período de quase 50 anos e provocou o surgimento de uma
biblioteca de literatura pró e contra.
Existem diversas
influências dominantes distinguíveis no pensamento de Bultmann. De David Friedrich Strauss
(1808-1874), Bultmann tomou o conceito de mito como a chave para a
interpretação do NT. Ele aceitou a concepção sobre o caráter não messiânico da
vida de Cristo e o gênio criador da pro-tocomunidade cristã. A escola da
história da religião contribuiu com sua concepção sincretista da origem do
cristianismo e com a suposição da influência penetrante do gnosticismo no mundo
do NT. A crítica das formas contribuiu para a falta de interesse de Bultmann no
Jesus histórico. Mas por baixo desses diversos elementos e como fator produtor
de sua unidade básica, podem-se encontrar no cerne do pensamento de Bultmann e
presente em toda a sua obra, duas influências principais: um luteranismo
consistente e o existencialismo de Martin Heidegger (1889-1976).
O luteranismo é uma
constante no pano de fundo e na orientação do pensamento de Bultmann. Ele pode
ser discernido facilmente em sua forte ênfase evangélica na pregação da
palavra. Mas o luteranismo de Bultmann ia mais fundo, pois ele entendia seu
próprio empreendimento teológico como uma conclusão lógica da doutrina
reformada da justificação somente pela fé. Aqui reside a razão teológica da
falta de interesse de Bultmann no Jesus histórico, pois procurar uma base
histórica para a fé seria trair o princípio da sola fide [somente pela fé]. A
desconfiança de Bultmann na busca por uma base objetiva para a fé subjaz,
assim, a seu profundo ceticismo a respeito da historicidade dos relatos dos
evangelhos e sua consequente desistorização do querigma. Em sua concepção, a
única história que encontramos no querigma é Dass, o mero fato da existência e
da morte por crucificação do homem Jesus de Nazaré. A Palavra que nos interpela
no querigma é, portanto, o fundamento, bem como o objeto, da fé. A definição
bultmanniana da fé em termos de opção e decisão pessoal, como um ato da vontade
e não do intelecto, é um legado tanto de Lutero quanto de Heidegger. O conceito
bultmanniano atenuado de igreja como pouco mais do que a arena na qual a
palavra é pregada e ouvida tem suas raízes no individualismo de Lutero.
Heidegger e Bultmann
foram colegas em Marburg de 1923 a 1928, e Bultmann admitia prontamente a
influência que o pensamento de Heidegger, particularmente formulado em Ser e
tempo teve sobre sua teologia. Um exemplo, a título de ilustração, é a
interpretação de Bultmann acerca da teologia paulina mediante o conceito
heideggeriano da transição da existência inautêntica para a autêntica. Tanto
Heidegger quanto Bultmann distinguiam a existência inautêntica (vida humana
cativa da ilusória segurança de um mundo moribundo) e a existência autêntica,
que, para Heidegger, se alcança pela decisão pessoal. Para Bultmann, a
existência autêntica é um dom de Deus alcançado pelo abandono da adesão a este
mundo e pela abertura à palavra da graça perdoadora anunciada no querigma.
Observamos que entre os discípulos de Bultmann a filosofia de Heidegger
permaneceu uma questão candente.
Bultmann
como crítico das formas
Trabalhando a partir
das conclusões de Schmidt e Dibelius, Bultmann aplicou o método da crítica das
formas em História da tradição sinótica (em alemão: 1921; em inglês: 1963).
Contrariamente à abordagem mais conservadora de Dibelius, as investigações críticas
das formas de Bultmann não são apenas um meio de classificação literária, mas
devem levar a juízos sobre a historicidade dos relatos e a genuinidade dos
ditos que se encontram na tradição. Seu ceticismo com relação à confiabilidade
histórica se evidencia no fato de que ele atribui a maior parte da tradição à
imaginação criadora das comunidades protocristãs. Ele encontra o material
genuíno principalmente nos ditos de Jesus. Mas esta genuinidade não se estende
aos contextos desses ditos nos evangelhos, a situação no evangelho, que é
criação da tradição posterior, especialmente dos próprios evangelistas.
Bultmann
como teólogo
A contribuição teológica
mais notável de Bultmann foi na área da hermenêutica. Embora muitos discordem
violentamente de suas propostas de solução, todos admitem que Bultmann lidou com
um problema real, a saber, a dificuldade de comunicar a mensagem cristã no séc.
XX. Como teólogo, a principal preocupação de Bultmann era que a mensagem do NT
deveria desafiar as pessoas, e não impedi-las de tomar uma decisão existencial por
causa de sua linguagem mitológica.
Acompanhe a continuação do estudo na próxima postagem...
David Rubens
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